sábado, 5 de setembro de 2015

UMA CARTA DE GORKI A TCHEKHOV


acima: Gorki e Tchekhov em 1900, nos jardins
da dacha de Tchekhov, em Yalta

 
A carta aqui transcrita foi extraída do livro "Carta e Literatura - Correspondência entre Tchékhov e Górki". Lançado pela Edusp, vale a pena ser lido do começo ao fim.
Estes dois titãs da literatura russa se conheceram pouco antes de morte de Tchékhov, aos 40 anos. Entre eles nasceu uma amizade e uma relação 'mestre/discípulo': Gorki, apesar de mais velho, estava no início de sua carreira. Passaram a se corresponder com freqüência , passando a existir entre ambos verdadeira troca intelectual. E é um pouco desta troca que deixo para vocês hoje. Trata-se de uma carta de Gorki a Tchekhov, na qual ele expõe suas impressões sobre Lev Tolstoi, após te-lo ido conhecer nos arredores de Moscou. Apaixonada que sou pelo velho conde, amei esta carta, em especial e da definição que o escritor do "realismo soviético" dá a gênio: Lev Tolstoi!





"Níjni Novgorod(*), 21 ou 22 de janeiro de 1900 

Bem, enfim estive na casa de Liev Nicolaievitch(1). Desde então, passaram-se oito dias e ainda não consigo dar forma a minhas impressões. Inicialmente, ele me surpreendeu com a sua aparência: não o imaginava assim, porém mais alto, de ossatura mais larga. Ele me pareceu um velhinho miúdo e, não sei por que, fez-me lembrar as histórias sobre o excêntrico e genial Suvorov(2). Mas, quando começou a falar, eu fiquei ouvindo maravilhado. Tudo o que ele dizia, embora às vezes, a meu ver, de tordo errado, era surpreendentemente simples, profundo e muito bom. Mas sobretudo muito simples. Pois, afinal, ele é uma orquestra completa, mas nem todos os instrumentos tocam em harmonia. Na realidade, é uma tolice terrível chamar uma pessoa de gênio. É totalmente incompreensível: o que é um gênio? É bem mais simples e mais claro dizer: Lev Tolstoi. É sucinto e absolutamente original, ou seja, não se parece com nada e, além disso é forte.Sobretudo forte.
Liev Nicoláievitch é muito importante e proveitoso, embora eu não o considere, de modo algum, um milagre da natureza. Ao olhar para ele, a gente sente um prazer tremendo de também ser homem, e toma consciência de que um homem pode ser Liev Tolstoi. Você entende? É agradável para o homem em geral. Ele me tratou muito bem, mas isto, de certo modo, não tem importância. Também não importa o que ele falou de meus contos, mas é importante ,de certo modo, tudo isso junto: tudo o que foi dito, sua maneira de falar, de sentar, de olhar para a gente. Tudo está misturado e é vigorosamente belo. Apesar de sentir, eu não conseguia acreditar que ele fosse ateu, mas agora que ouvi como ele fala de Cristo, e vi seus olhos, demasiado inteligentes para ser um crente, sei que ele é mesmo um ateu, e profundo. Pois não é assim?

Fiquei com ele mais de três horas e depois fui ao teatro para ver o 3º ato de Tio Vânia. De novo Tio Vânia. De novo. E ainda tenho a intenção de rever essa peça, quando tiver apanhado antecipadamente o ingresso. Não a considero uma pérola, mas vejo nela mais conteúdo do que os outros. Seu conteúdo é imenso, simbólico e, na forma, é algo totalmente original, algo incomparável. Pena que Vichnévski não compreenda o tio, mas em compensação os outros estão magníficos. Por outro lado, o Astrov de Sanillávski não está exatamente como deveria estar. Entretanto, todos interpretam maravilhosamente! O teatro Máli (4)é espantosamente grosseiro em comparação com esse grupo. Como todos são inteligentes, cultos, quanta intuição artística há neles! Knnipper(4) é uma atriz divina, mulher encantadora e muito lúcida. Como são boas as suas cenas como Sonia (5)! E Sonia também interpretou de maneira excelente! Todos, inclusive o criado, Grigoriev, estavam magníficos e sabiam, com perfeição e sutileza, o que estavam fazendo e, na verdade, mesmo a ideia errônea de Vichnévski sobre o tio Vania pode ser perdoada devido à sua interpretação.
De um modo geral, esse teatro deu-me a impressão de um trabalho sólido e sério, de um grande trabalho. Como lhe vai bem o fato de não ter música, de as cortinas não subirem, mas se abrirem. Sabe, eu não podia imaginar tal interpretação, nem tal cenário. Notável! Inclusive lamento não viver em Moscou, pois se isso acontecesse, eu não pararia de ir a esse teatro maravilhoso.
Vi seu irmão.Ele estava em pé, aplaudindo. Eu nunca aplaudo os artistas: é ofensivo, é ofensivo para eles, ou melhor, deve ser ofensivo.

A propósito, você viu Cyrano de Bergerac em cena? Vi há pouco e fiquei entusiasmado com a peça.


Um caminho para os livres Gascões!
Somos filhos do céu meridional,
Todos nascidos sob o sol do meio dia
E trazendo no sangue o sol!(5)
Muito me agrada esse "trazendo no sangue o sol". É assim que se deve viver, como Cyrano e não como o tio Vânia e os que estão aí com ele.
Mas eu o cansei, não é verdade? Até logo!
Estou com pleurisia. Tenho tossido com todas as forças e não tenho dormido à noite, de dor no lado. Seguramente, na primavera irei à Yalta para me tratar.
Um forte aperto de mão. Saudações a Sredin, se o encontrar, e que ele cumprimente Iartsev e Aléksin(6).

Seu,
A.Piéchkov(**)

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Notas da Milu:
 
(*) Cidade situada a leste da Rússia, em sua parte européia. É a quinta maior cidade do país e uma das mais lindas. Terra natal de M.Gorki.Por ser uma de minhas cidades favoritas, já andei postando sobre ela no blog.
 
(1) nome e patronímico de Liev Tolstoi que, após este primeiro encontro, escreveu em seu diário ter gostado de Gorki, "um autêntico homem do povo".
(2)
Marechal do período de Catarina, a Grande.
(3) Teatro estatal em Moscou. Tradução literal: Teatro Pequeno, ao contrário do Bolshoi - Grande Teatro.
(4) Olga Knipper, atriz de teatro que, na montagem de Moscou, a qual Gorki se refere, fez o papel de Ielena Andreievna, com quem Tchekhov se casou. Depois do casamento, passou a se chamar Olga Knipper-Tchékhova.
 
Olga Tchékhova
 
Olga ao lado do marido escritor
 
Olga na velhice
(5) Pena que eu não possa falar a mesma coisa da montagem brasileira que eu assisti, a qual há alguns anos atrás, com Diogo Vilela e Deborah Bloch nos papéis de Vânia e Ielena, respectivamente. O Diogo Vilela, brilhante, impecável. Quanto à Débora, deixou muito a desejar, na minha opinião. 
 
(5) ato II, cena VII. (6)Médico de Yalta, amigo de Gorki.
(7) Cidade da Criméia, sul da Ucrânia, na costa do Mar Negro. Tchékhov possuia uma dacha lá.
Dacha de Tchekhov, em Yalta
A seguir, fotos de Yalta, local paradisíaco:
(**) Nome verdadeiro de gorki:Aleksei Maksimovich Piechkov
Fonte das fotos: www.yandex.ru

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