quarta-feira, 12 de setembro de 2012

O QUE O PRÍNCIPE MÍCHKIN REPRESENTA NA CRIAÇÃO DE DOSTOIEVSKI


O texto deste post foi extraído do livro do filósofo italiano Luigi Pareyson, intitulado "Dostoievski: filosofia, romance e experiência religiosa", editado pela Edusp. O autor nos apresenta uma abordagem bastante interessante e diferente do escritor russo e de sua obra, mergulhando fundo em seu pensamento filosófico.

Escolhi o tópico que analisa as figuras do bem na obra deste titã da literatura, e mais especificamente o príncipe Michkin, de O Idiota. A escolha se deu, em primeiro lugar, pelo encantamento que tenho por este personagem, por sua incrível profundidade filosófica e psicológica  e, também, pelo fato do bem não ser o aspecto predominante nos romances do escritor (e, consequentemente, nas obras que analisam sua criação),que, através de seus personagens, apresenta, maior parte das vezes, uma constatação da realidade do mal, realidade esta  intrínseca ao ser humano. Dostoievski chega a ter uma obsessão pela presença do mal no mundo, o que fez com que uma abordagem do bem, através da análise de seus personagens que encarnam este aspecto, me interessasse  muito.



Antes de entrar no tema  propriamente dito, julgo interessante, também, a colocação feita pelo referido filósofo italiano sobre o aparente caráter "secundário" do bem na obra dostoievskiana:
  o que Pareyson explica da seguinte forma:
(Para Dostoevski) o bem  tem um caráter silencioso e vem sempre  como consequência da destruição do mal, ou seja, a denúncia do mal e a afirmação do bem são um mesmo ato espiritual.
A partir desta colocação, Pareyson analisa as personagens que encarnam o bem na obra  de Dostoevski:
em primeiro lugar as figuras dos homens espirituais, como o peregrino Makar, de "O Adolescente", o bispo Tíkhon, de "Os Demônios", o stárietz Zóssima, de "Irmãos Karamázov".
Figuras do bem são, depois, uma quantidade de personagens femininas,como Sonia Marmieládovna, de "Crime e Castigo"(a redentora de Raskólnikov); Sófia Andréievna, a mãe do personagem título de "O Adolescente" e as personagens de "Os Demônios", a saber: Mária Timofêievna, a manca, mulher de Stavróguin; Dacha, a irmã de Chátov e Sófia Matvêievna, a consoladora dos últimos dias de Stiepan Trofi´movitch.

Mas  a personagem de Dostoievski h que representa, de modo decisivo e absoluto, a personificação do bem, a realização do ideal, a imagem da bondade, a encarnação do princípio do bem, em suma, o símbolo do Cristo,é O Idiota, o príncipe Míchkin. Neste ponto passo a transcrever o texto de Pareyson, que baseou sua análise, também, em anotações do próprio escritor russo, feitas nos Cadernos de"O Idiota"(1):
Sabe-se que o desígnio de Dostoievski em O Idiota é representar um homem absolutamente bom No dia 31 de dezembro de 1867, escreve:
"Há muito tempo certa ideia me atormentava, mas temia extrair dela um romance, porque é uma ideia muito difícil de realizar e eu não estou preparado. É uma ideia muito sedutora e eu a amo muito. Esta ideia é: representar um homem completamente bom. Na minha opinião não pode haver nada mais difícil, especialmente em nosso mundo".
No dia seguinte continua:
"A ideia principal do romance é representar um homem positivamente bom. Não há nada mais difícil no mundo, especialmente hoje; todos os escritores que enfrentaram a representação de um homem positivamente bom fizeram fiasco. Porque é uma tarefa desmesurada... No mundo há uma pessoa positivamente boa: Cristo; de modo que o aparecimento deste homem desmesuradamente, ilimitadamente bom é já, de per si, um milagre excessivo...Recordarei somente que, de homens bons, na literatura cristã, o único bem acabado é Dom Quixote. Mas ele é bom exclusivamente porque , ao mesmo tempo, também é cômico.
Esse é, portanto, o desígnio de Dostoievski ao criar a extraordinária, magnífica, enigmática, dificílima figura do príncipe Míchkin: representar um homem inteiramente bom, com a plena consciência do risco do cômico, que parece inerir necessariamente a tal empresa, e, ao mesmo tempo, com o com o deliberado propósito de não cair nele. A solução que Dostvski encontrou para este árduo problema  - solução genial no plano artístico, mas de uma incomparável profundidade nos planos religioso e filosófico- foi o único  modo de não cair no cômico, ou seja, de não criar  um novo Dom Quixote: fez do príncipe Míchkin o símbolo do Cristo. Não que desse modo o príncipe Míchkin escape completamente  do perigo do cômico, já que Dostoievski se encontrou nesta terrível situação: para fazer  dele o símbolo do bem, teve de fazer desse homem um ser anormal e doente, inapto para viver no meio do mundo e desprovido diante das astúcias  e malvadezas dos homens. Mas esse mesmo fato é já uma denúncia da situação trágica do homem, de modo que o cômico mal tem tempo de perfilar-se e logo desaparece. Pelo menos o leitor sensível e sensato não percebe nenhum sentido de comicidade.
Quanto às personagens do romance, deve-se dizer que  também aquelas que, por sua rudeza espiritual ou por seu comportamento mundano. são menos aptas para  compreender o príncipe e, portanto, inclinadas a dele rirem e se aproveitarem, depois de um primeiro movimento de estupor, acabam, todavia, por  achar totalmente natural, óbvio e inevitável que ele seja tão ingênuo nas coisas do mundo e, ao mesmo tempo, tão agudo no penetrar o coração dos homens, não podendo deixar de ter respeito por tanta elevação de alma.
A divergência entre os dois aspectos do príncipe, a saber, por um lado, a doença, que o torna tão ingênuo e desarmado. e, por outro lado, sua concentração espiritual, que o torna tão elevado e superior, atesta não só a compatibilidade desses aspectos mas a sua  indissociabilidade e indica, em tal indissociabilidade, o próprio significado da figura do príncipe, isto é, a sua natureza simbólica. A vida do príncipe Míchkin tem, de fato, dois aspectos: por um lado, é uma vida terrestre, uma vida extraordinária, excepcional, imprevisível, mas completamente humana;  por outro lado, tem uma ressonância ultraterrena porque, em todos os seus eventos, se bem que mínimos e irrelevantes, alude a um sentido ulterior e remete a um ser superior. A enigmaticidade da figura do príncipe reside, precisamente, na sua natureza simbólica, isto é, precisamente naquele aspecto cristofórico cujo significado, nele,se revela com bastante clareza. Desse modo, paradoxalmente, pode-se dizer que o que o torna é justamente o que melhor o explica.
Por certo, a ambiguidade do príncipe é até demasiadamente fácil de notar. O próprio fato de que, para a interpretação simbólica de sua figura, não pareça haver  alternativa senão ver nele um ser decadente, doentio, anormal, já é uma prova de que só se pode considerá-la simbolicamente, mais precisamente como símbolo não apenas do bem, mas verdadeiramente do Cristo. À figura de Cristo condiz, de fato, o "escândalo", no sentido de que Cristo é o próprio Deus em "figura de servo", como diz São Paulo, e de que não poderia haver encarnação mais adequada de Deus do que essa figura  humilde e vil. Ora, o absurdo de que Deus, para encarnar-se, tenha escolhido a "figura de servo" não é maior do que o absurdo de tomar um "idiota"como símbolo de Cristo.( ...)A possibilidade de interpretá-lo como como símbolo do Cristo não é contrastada, mas, de preferência, auxiliada pela sua doença que, por sua vez, é o símbolo da "humilhação" do Cristo, da sua  presença não luminosa ou gloriosa, mas humilde e modesta, da possibilidade de ser desconhecido, desprezado, zombado,(...).
Entre os muitíssimos dotes de bondade do príncipe , há vários que o tornam apto para figurar o Cristo: a brandura, mansa e paciente; a modéstia, humilde e confiante ao mesmo tempo; o desprendimento total e desinteressado; a piedade, compassiva e corajosa;a sinceridade, congênita e desarmante, a infinita capacidade de perdão e amor.(...) sua influência sobre as almas desesperadas, sua atitude ao consolar os aflitos,o poder que ele tem sobre a intimidade das pessoas, a capacidade de concentrar em si  o amor das almas mais sensíveis(...), o dom de saber transformar os homens só com sua presença. Particularmente significativo deste ponto de vista é o fato de que ele não só não ofende, mas nem ao menos se defende. Ele compreende tudo, lê no coração dos homens, adivinha a malevolência e o engano, porém indulgente e paciente(...).Ele é um enigma para todos, mas ninguém permanece um enigma para ele.
(...)
Que o príncipe Michkin seja tal personificação do bem, a ponto de ser um símbolo de Cristo, é confirmado pelo fato de que ele é tão pouco deste mundo, que não pode viver do mesmo modo como vivem todos  os outros.Não que a ideia que Dostoiveski tem da eternidade seja tal que implique uma desvalorização da vida terrena; nem se pode dizer que representa o príncipe como um asceta que se macera numa sofrida e voluntária renúncia. A sua própria existência transcende do mundo, como convém  à equação escrita em grandes caracteres nos Cadernos de O Idiota:
"O PRÍNCIPE - CRISTO". A vida pública de Cristo foi breve: ele apareceu no mundo por pouco tempo e logo o deixou para a eternidade. Igualmente fugaz é o aparecimento do príncipe Míchkin, a sua "vida entre os grandes".
Emerso da obscuridade da sua loucura , ele percorre uma breve estadia na clareza da consciência, mas não tarda a recair nas trevas da loucura, já incurável e definitiva: sinal de não pertencer a este mundo, no qual, no entanto, exerceu uma ação inesquecível e decisiva, e claro indício de uma "cidadania celeste".

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(1)Notas da Milu
(1)Manuscritos onde Dostoievski esboçou O Idiota.O autor mantinha estes manuscritos de notas  para várias de suas obras e isto será assunto de nosso próximo post. Vejam foto abaixo:



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