No meu outro blog (www.culturalivrenaweb.blogspot.com) eu vinha postando regularmente as cartas extraídas do livro " VINTE CARTAS A UM AMIGO", de autoria de Svetlana Allilyeva, a única filha de Stalin. Agora, começo a transferir tais potagens para este novo blog e futuramente a dar continuidade à estas cartas.
Hoje a carta postada é a de número 4. Estas cartas são, a meu ver, importantes para se contextualizar as atitudes de Stalin. Para conhecer um pouco mais do que a história convencional nos mostra. As cartas apresentam não só o Stalin, ator principal de uma época totalmente nova para as repúblicas integrantes da URSS, bem como para o mundo, mas mostra, também, o Stalin homem, pai, marido, genro. Além disto, mostram os atores coadjuvantes desta história. Sem dúvida, um livro que deve ser lido por todos os que curtem história e política, mas que, infelizmente, se encontra esgotado, só podendo ser encontrado em raríssimos sebos.
Na oportunidade, aproveito para colocar, sempre que possível, foto das pessoas e lugares citados, a fim de dar um atrativo extra ao post.
Milu Duarte
"Você não poderá compreender o caráter de minha mãe e toda sua curta vida, sem que eu lhe fale de seus pais. A vida deles também é muito interessante e em muitos detalhes traz a marca da época. Antes de mais nada, devo dizer que as qualidades herdadas e toda a formação, infância e educação de mamãe maracaram-lhe muito a personalidade. Nosso avô Serguei Yakovlevitch Allilyev descreveu, de modo interessante, sua própria vida em um livro de memórias publicado em 1946. Mas apareceu, então, incompleto, com muitos cortes.(1) O livro foi depois, em 1954, republicado, porém, ainda mais resumido. esta edição é, de todo, sem interesse. Vovê era um camponês da província de Voronej.
Serguei Alliluyev, avô de Svetlana
Não era um russo puro, tinha uma miscigenação cigana muito acentuada - sua avó era cigana. Provavelmente vêm dos ciganos o aspecto algo exótico, sulista - os olhos negros, os dentes deslumbrantes, a tez tostada, a magreza - de todos os Allilyevs. Estes traços se imprimiram principalmente no irmão de mamãe - Pavlucha (um verdadeiro hindu, parecido com Nehru, quando moço) e na própria mamãe. Talvez seja dos ciganos aquela sede inesgotável de liberdade, que vovô possuia, e sua paixão de viver como nômade, indo sempre de um lugar para outro. Camponês de Voronej, ele logo se ocupou com toda espécie de artesanato possível e era sempre muito habilidoso em todas as coisas técnicas - tinha realmente mãos de ouro. Fez-se logo serralheiro e trabalhou nas oficinas da ferrovia da Transcaucásia. A Geórgia, com sua natureza, com muito sol, foi o apego de vovô, durante toda a sua vida.
Voronezh - Rússia
mais fotos da cidade: http://vrnfot.ru/photo
mapa interativo da cidade
Ele gostava daquele esplendor exótico do Sul, conhecia e compreendia o caráter dos georgianos, dos armênios, dos azerbaidjanos. Morou em Tibilisse, Baku e Batum.
Tbilisse - Capital da Geórgia
mais fotos de Tbilisse: http://www.tbilisifoto.narod.ru/
Baku, capital do Azerbaijão
http://www.baku.ru/glr-list.php?upd=1133622039&new=0&sr=1
Batum - Geórgia
(fonte: www.wikipedia.ru)
Ali, nos círculos operários, encontrou-se com os social-democratas M.I. Kalínin e I. Fioletov e tornou-se membro do RSDRP(2), já no ano de 1898. Tudo isto está descrito, de maneira muito interessante, em suas memórias: a Geórgia daqueles tempos, a influência da intelectualidade russa de vanguarda no movimento de libertação nacional georgiano e aquele admirável internacionalismo que já então caracterizava o movimento revolucionário transcaucasiano (e que, infelizmente, logo depois, se extinguiu). Vovô nunca foi nem um teórico, nem um membro preeminente do Partido. Era seu soldado, seu trabalhador braçal, um daqueles sem os quais não se poderiam estabelecer as ligações com os trabalhadores e realizar o trabalho quotidiano para empreender a própria revolução. Mais tarde, nos primeiros anos deste século, viveu com a família em Petersburgo(3), onde trabalhou então, já como contramestre, na Empresa de Energia Elétrica. Trabalhava sempre com entusiasmo e todos o tinham como um excelente técnico e conhecedor de seu ofício. Em Petersburgo, vovô e seus familiares tinham um apartamento de 4 quartos, um desses apartamentos que hoje, aos nossos catedráticos, pareceriam um sonho irrealizável... Seus filhos estudaram no ginásio de Petersburgo e cresceram como autênticos intelectuais russos. Foi assim que a Revolução de 1917 o encontrou. Sobre tudo isso eu ainda volto a falar. Depois da Revolução, vovô trabalhou no setor de eletrificação, na construção da Hidrelétrica de Chatursk, onde viveu e trabalhou por muitos anos, tendo sido, ali mesmo, certa feita nomeado presidente da Empresa Lenenegro.
Chatursk, Rússia
Como velho bolchevista, esteve intimamente ligado à velha guarda revolucionária, a todos conhecia e todos o conheciam e estimavam. Era de uma admirável delicadeza, afável, terno, dava-se bem com todos e, não obstante estas qualidades - que nele constituíam um todo único - era intimamente firme, incorruptível e assim, desta maneira tão orgulhosa, conduziu até o fim da vida (morreu aos 79 anos de idade, em 1945) seu "eu", sua pureza, excepcional honestidade e decência. Conservando essas qualidades, ele, homem afável, podeia tornar-se duro com aqueles que não comprendiam e não podiamalcançar esses traços de seu caráter. Com avantajada estatura, ficou emagrecido na velhice, com as mãos e as pernas compridas e secas, sempre muito asseado e cuidadoso e mesmo elegantemente trajado - hábitos adquiridos em Petersburgo - com seu cavanhaque pontiagudo e bigodes brancos, vovô, de certo modo, fazia lembrar M.I.Kalínin(4). Na rua a garotada, muitas vezes, gritava: "Vovô Kalínin!". Mesmo na velhice, conservou ele o brilho vivo daqueles olhos ardentes e negros como carvão e a capacidade de se alegrar de repente e dar contagiantes gargalhadas. Vovô morou conosco em Zubalovo, onde o adoravam todos os seus numerosos netos. Em seu quarto, havia um banco de carpinteiro, toda sorte de instrumentos, grande quantidade de maravilhosas ferramentas, arames, todas aquelas coisas que nos faziam pasmar, a nós crianças, e ele sempre nos permitia mexer naqueles trastes velhos e tirar dali o que quisessemos. Vovô estava eternamente trabalhando, soldando, afiando, aplainando, fazia todos os consertos necessários na casa, reparava a rede elétrica...
Datcha de Stalin, em Zubalovo (a primeira foto do post também é nesta datcha)
Todos recorriam a ele para uma ajuda ou um conserto. Gostava de caminhar, em longos passeios. A nós vinham juntar-se ainda os filhos de meu tio Pavlucha, que moravam na Zubálovo 2(onde também viveu A.I.Mikoyan) ou o filho de Anna Sergueievna, irmã de mamãe. Vovô gostava de distrair seus netos e de ir ao bosque à cata de nozes ou cogumelos. Lembro-me de como vovô me punha nos ombros, quando eu me cansava, e assim eu navegava lá no alto, acima da vereda, por onde passeavam os outros - e eu alcançava com as mãos até as nozes nos ramos.
A Morte de mamãe o abateu. Ele se transformou, tornou-se reservado e completamente taciturno.
Nadezhda Allilyeva, mãe de Svetlana
Quem diria, Stalin e Nadezhda num pic-nic!!! (anos 20)
Túmulo de Nadezhda
Depois de 1932, ele se recolheu inteiramente, por muito tempo ficava sem sair do quarto, onde estava sempre a desbastar um pedaço de madeira ou a confeccionar alguma coisa. Tornou-se ainda mais afetivo com os netos. Passou a morar, ora conosco, ora com sua filha Anna, irmã de mamãe, porém sobretudo conosco em Zubálovo. Depois começou a adoecer. Sua alma devia estar mais enfêrma que tudo e, daí, vinha todo o restante - pois em geral possuía uma saúde de ferro.
Em 1938 morreu Pavlucha, irmão de mamãe. Foi mais um golpe. Em 1937, Stanislav Redens, marido de Anna Sergueievna, foi preso e, em 1948, depois da guerra, ela própria, Anna Sergueievna, foi levada à prisão. Vovô, graças a Deus, não viveu até esse dia. Morreu em junho de 1945, com câncer no estômago, diagnosticado muito tarde. Sim, seus males não eram males de senilidade, do corpo: sofria intimamente, porém nunca aborrecia ninguém com seus sofrimentos, nem com pedidos, nem com exigências.
Ainda antes da guerra começou a escrever suas memórias. Em geral, gostava de escrever. Eu recebia, naqueles tempos, longas cartas dele, enviadas do Sul, com descrições minuciosas das belezas da região, que ele tanto amava e compreendia. Tinha o estilo suntuoso de Gorky - ele em geral gostava muito de Gorky, como escritor - e com ele concordava inteiramente em que cada pessoa deve descrever sua vida.
Vovô escreveu muito e com entusiasmo. Infelizmente, não chegou a ver seu livro publicado, apesar de seu velho amigo M.I. Kalínin ter recomendado muito para serem editados aqueles originais de "um velho bolchevista e um rebelde nato".
M.I.Kalínin
A enfermidade, no último ano de sua vida, progrediu impetuosamente. Ele emagreceu de modo assustador: eu o vi no hospital, pouco antes de sua morte, e me assustei. Parecia um esqueleto vivo: já não podia falar, apenas cobria os olhos com a mão e se punha a chorar em silêncio; compreendia que todos vinham ve-lo para o derradeiro adeus... No caixão, ele jazia como um santo hindu - tão bonito com seu rosto sêco e emaciado, o nariz afilado e ligeiramente adunco, os bigodes e a barba cor de neve. O caixão foi velado no salão do Museu da Revolução, onde foi visitado por muita gente - os velhos bolchevistas. No cemitério, o velho revolucionário Litvin -Sedói disse umas palavras que, na época, não entendi direito, mas que guardei para toda a vida e hoje compreendo tão bem o seu sentido: "Nós, a velha geração dos marxistas-idealistas..."
O casamento de vovô com vovó foi totalmente romântico. Com ele, jovem operário de uma oficina de Tifilis(5), vovó saiu de casa, retirando pela janela uma trouxa com suas coisas, quando não tinha, ainda, 14 anos. Na Geórgia, onde ela nasceu e cresceu, a adolescência e o amor chegam cedo, daí nada haver de extraordinário nisso. O extraodinário é que ela tenha deixado sua casa, de relativo conforto, seus queridos pais, uma família imensa de irmãos e irmãs, por um pobre serralheiro de vinte anos. Como lembrança de sua casa, vovó conservou durante toda a vida uma fotografia onde se via toda a família numa carrruagem junto da casa - seu cavalo de estimação, o cão deitado e o cocheiro com as rédeas nas mãos, todas as pessoas da casa, na carruagem, com os peitos estofados, os olhos fixos na máquina fotográfica...
Nossa avó, cujo nome de solteira era Olga Evguenievna Fiodorenka, havia nascido e se criado na Geórgia e amou este país e seu povo durante toda a vida, como sua própria pátria. Ela representava uma estranha mistura de nacionalidades. Seu pai, Evgueny Fiodorenko, apesar do sobrenome ucraniano, cresceu e viveu na Geórgia; sua mãe era georgiana e ele mesmo falava o georgiano. Casou-se com uma alemã, Magdalina Eichgolds, de uma família de colonos alemães. Na Geórgia, desde os tempos de Catarina II, havia colonos alemães que habitavam suas aldeias. Magdalina Eichgolds possuía - como era de se esperar, uma cervejaria, preparava maravilhosamente todos os pratos, teve dez filhos (o último, nossa avó Olga) e costumava levá-los todos à igreja protestante.
Avó de Svetlana
Em família, Fiodorenko falava tanto o alemão como o georgiano. Só mais tarde foi que vovó aprendeu a língua russa e toda a sua vida falou com sotaque tipicamente caucasiano, com vários "vai-me", "chvilo", "guenatzvale", "tchirime"!(6), e aí mesmo incluia "Jesus-Maria" ou seu invariável "Mein Gott!" Muito religiosa sempre, sua vida de "revolucionária", com vovô, só serviu paa depurar-lhe a religiosidade dos antolhos e do dogmatismo. Não reconhecia diferença entre o protestantismo, a igreja gregoriana (dos armênios) e a ortodoxa, e considerava todas estas diferenças um despropósito. E, quando nós, crianças, começavamos a brincar com ela e perguntávamos: "Onde está Deus?"- "Onde está a alma fo homem?, ela se zangava e nos dizia: "Cresçam e amadureçam que vocês saberão onde. Me deixem em paz! Vocês não vão me reeducar!" Ela mostrou que estava certa. Quando eu fiz 35 anos me convenci de que vovó era mais inteligente que todos nós. Educada no amor alemão pelo trabalho, vovó era uma pessoa extremamente laboriosa. Tinha, como vovô, as mãos de ouro - só que femininas. Cozinhava bem, sabia costurar, era ótima dona de casa, com toda a escassez de meios de sua vida com os bolchevistas: prisão de vez em quando e a vida errante de uma cidade para a outra. E era de ver como afligia seu coração a economia doméstica "estatal" que elemtos do govêrno introduziram em nossa casa nos últimos anos - como ela se irritava vendo o desperdício do dinheiro do Estado! Eles não a compreendiam (ou talvez a compreendessem em demasia!) e por isto não gostavam muito dela. Ao contrário do temperamento de vovô, sempre delicado e meditativo, vovó podia, subitamente, exasperar-se, insultando os "donos de casa relaxados", todos os nossos empregados estatais - cozinheiros, mordomos e copeiros, que a consideravam uma "velha déspota", extravagante e caprichosa. Desta reputação que tinha vovó, também ouvimos falar - nós, crianças, que vivíamos com ela em Zubálovo - depois da morte de nossa mãe. E não compreendíamos então, é claro, que vovó tivesse um temperamento tão ardente que não podia calar-se diante desse infame sistema "estatal" de nossa economia doméstica. Não era a toa que ela gostava da Geórgia e ali se criara. Tinha um temperamento típicamente do Sul, quente, com lágrimas de alegria e pesar, com lamúrias e efusivas manifestações de amor, de carinho e de descontentamento. Mamãe, controlada, porém mais severa que vovô, se cansava com as explosões dela, com suas críticas permanentes à educação das crianças, à disciplina da casa - ou, às vezes, a mamãe mesma. E não gostava quando vovó vinha a nossa casa amiúde e interferia nos problemas domésticos. Talvez porque todos os receios e aborrecimentos de vovó fossem, no fundo, inteiramente justos e sensatos, mamãe simplesmente os temia e procurava afastar-se deles.
Mas deixe-me voltar atrás. Seja como for, meus avós formavam um bom casal. Vovó tinha estudado os quatro primeiros anos, provavelmente os mesmos que vovô. Moraram em Tíflis, Batum, Baku e vovó foi sempre ótima esposa, paciente e leal. Ela se dedicava à mesma atividade dele e, embora tenha, ela própria,ingressado no Partido antes da Revolução, constantemente se lamentava, dizendo que "Serguei arruinou a vida dela!" e que com ele só conheceu os "sofrimentos". Quatro de seus filhos - Anna, Fiodor, Pável e Nadezhda - nasceram todos no Cáucaso e eram também sulistas em tudo - na aparência, nas impressões que guardavam da infância, em tudo aquilo que marca a pessoa, insensível e inconscientemente, nos primeiros anos de vida.
Eram todos criaturas excepcionalmente belas, com exceção de Fiodor, que era, em compensação, o mais inteligente e talentoso, a tal ponto que, apesar de sua baixa origem "pequeno-burguesa", foi admitido como guarda-marinha em Petersburgo. Todos da família eram afáveis, cordiais e bondosos. Esses eram realmente traços comuns a todos eles. É possível que a mais inflexível, obstinada e firme tenha sido mamãe, que possuía uma espécie de fôrça e teimosia interiores. Os outros eram mais dóceis. Pavlucha e Anna eram excepcionalmente generosos; e mamãe sempre se queixava deles, dizendo que, juntamente com vovó, só faziam "estragar as crianças". eles acusavam mamãe de "secura", de parcialidade em relação às governantas que "oprimiam" as crianças e não deixavam que elas crescessem "à vontade". Tudo isto, no entanto, eram discussões amistosas, porque, de modo geral, todos eram muito amigos e muito chegados uns aos outros.
Vovô e vovó consideravam que a educação das crianças devia ser, sempre que possível, a melhor e, por isto, quando arrumaram sua vida em Petersburgo, os filhos foram matriculados no ginásio.
Petersburgo, atual cidade maravilhosa de
São Petersburgo(olha eu lá, em 2006)
Vendo as fotografias da época fica-se assombrado com a fisionomia de vovó: ela era muito encantadora! Não apenas por seus grandes olhos cinzentos, os traços corretos do rosto, a boca pequena e graciosa, o porte altaneiro, soberbo, franco, "de rainha", mas também por seus sentimentos de extraordinária dignidade. Por isso, seus grandes olhos pareciam mais abertos e sua figura pequena parecia maior. Vovó era de estatura pequena, bem feita, asseada, elegante, ágil, de cabelos claros e, como se diz, tão sedutora que seus admiradores não a deixavam em paz... É preciso dizer que era próprio dela apaixonar-se e de vez em quando se entregar a aventuras amorosas, às vezes com um polonês, às vezes com um húngaro, com um búlgaro e até com um turco.Ela amava a gente do sul e muitas vezes afirmava, calorosamente, que os "homens russos eram uns cafagestes". Seus filhos, jé em idade de ginásio, viam tudo isto com uma certa paciência, pois, em geral, tudo terminava com sua volta normal à vida do lar. Alguns anos mais tarde, vovê e vovó, embora tenham sofrido demais, e cada um à sua maneira, a morte de mamãe, se separaram e foram morar em apartamentos diferentes. Quando se encontravam, à mesa, em nossa casa de Zubálovo, no verão, tinham picuinhas por coisas insignificantes, e vovô se irritava, principalmente, com as mesquinhas implicâncias de vovó em todas as questões domésticas. Ele se colocava, de certo modo, acima disso tudo; ocupava-se mais com a elaboração de suas memórias. Aqueles resmungos aborrecidos, aqueles "ach!" e "och!", essas lamúrias caucasianas em face das desordens, tiravam-lhe o equilíbrio e a calma. Por isso, cada um deles enfrentou a velhice, a doença e a morte, na solidão, cada qual por si. Cada um acreditava em si mesmo e conhecia seu caráter e interesses, tinha seu orgulho, seu modo de vida, não se agarravam um ao outro, como velhos desamparados. Cada qual amava a liberdade e, apesar de ambos sofrerem a solidão, nenhum deles queria renunciar à liberdade nos últimos anos de suas vidas. "Liberdade, liberdade, eu amo a liberdade!" - gostava de exclamar vovó e, com isto, dava a entender, com toda a clareza, que foi precisamente vovô quem a privou dessa mesma liberdade e, de modo geral, "arruinou sua vida".
Estou o tempo todo a avançar sobre o futuro, quando falo do passado. Assim devo fazer porque não é possível respeitar uma sequência cronológica. Os pensamentos surgem inesperadamente.
Nos anos anteriores à Revolução, vovó, além de dirigir a casa e a educação dos quatro filhos, para os quais costurava, ainda frequentava um curso de parteira e como tal trabalhou excelentemente. Gostava de crianças, amava a vida e esse trabalho lhe parecia notável e dava a ela uma satisfação espiritual grandiosa. Quando começou a Primeira Guerra Mundial, vovó passou a cuidar dos soldados feridos em um hospital e, durante toda a sua vida, guardou as cartas daqueles soldados que se restabeleciam e regressavam a ausas casas. Ela me mostrava essas cartas e as guardava com amor e enternecimento. Costurava em casa, naquele tempo, roupa de baixo para soldados e o fazia com habilidade e rapidez, como tudo de que se ocupava.
É preciso dizer que, apesar de seu amor ao trabalho e de suas "mãos de ouro", não tinha - nem ela nem vovô - absolutamente senso prático em sua vida particular. Já nos últimos anos, às vezes em Zubalovo, as vezes em casa de anna Sergueievna, gozando os pequenos privilégios (sobretudo simbólicos) de velhos bolchevistas, recebendo uma mísera "pensão", ambos revelavam o máximo desdém pelos bens terrenos. Usavam ainda, ambos, suas roupas de antes da Revolução. O sobretudo tinha já vinte anos e vovó reformava seus pobres vestidos, fazendo de três molambos um novo e decente. Isso não era um ascetismo hipócrita, mas simples ausência de necessidades supérfluas e também a completa incompreensão e, por assim dizer, falta de consciência de sua nova e "alta" posição em nossa nova sociedade: a mesma graças à qual outros parentes, "augustíssimas" personalidades, criavam uma vida luxuosa para si e para todos os seus parentes - próximos e distantes. E eles nem sequer pensavam em tal coisa.
Mamãe mesma era extremamente sóbria em suas necessidades vitais; somente nos últimos anos de sua vida, é que Pavlucha, então servindo em nossa representação diplomática em Berlim, lhe mandou alguns vestidos bonitos, com os quais ela se tornava inteiramente irresistível... mas, normalmente, andava com as roupas mais modestas, feitas em casa, e só de vez em quando tinha algum vestido "melhor" confeccionado por costureira. Mas, de qualquer maneira, mamãe estava sempre encantadora.
Esta completa ausência de avidez do pequeno-burguês era tida por muitos até como ofensiva: achavam e diziam ser inconcebível que o genro "não pudesse" vestir melhor os velhos "indigentes"...Mas o próprio genro trajava no verão uma roupa de linha, semelhante a um uniforme militar, e no inverno, um capote de lã,com uns 15 anos de uso, além de uma peliça curta e extravagente, revestida de pele de veado, com forro de petit gris, que deve ter sido "arranjada" logo depois da Revolução, juntamente com a uchanka(7),usada no inverno até seus últimos dias de vida...
Uchanka
Os "velhos indigentes", "marxistas-idealistas", eram fortes de espírito, cheios de vida, inesgotáveis e eternos.
Meu pai já de há muito conhecia bem a família dos Allilyevs. Desde o fim do século passado. Ele amava e respeitava muito a ambos e isto era recíproco. Sobre seus primeiros encontros, ligados ao trabalho dos grupos clandestinos, há muita coisa escrita nas memórias de vovô - e não vou repeti-la. A propósito, a estória da família refere que papai, ainda jovem, salvou mamãe. Foi em Baku, quando ela tinha dois anos. Brincando no cais, caiu no mar e ele a retirou das águas. Para mamãe, pessoa romântica e impressionável, semelhante início de idílio provavelmente teve imensa significação quando ela, ginasianda de dezesseis anos, o encontrou depois. ele voltava da Sibéria, um revolucionário exilado de 38 anos e velho amigo da família.
Vovô vinha ao nosso apartamento no Kremlin e ficava sentado no meu quarto esperando muito tempo pela vinda de papai para jantar. Jantávamos habitualmente por volta de 7 ou 8 horas da noite, quando papai chegava, ao fim do dia de trabalho, de seu gabinete no Comitê Central ou no Conselho de Ministros (naquele tempo, denominado Sovnarkome)(9). Ele jantava sempre com alguém e vovô só conseguia, no melhor dos casos, sentar-se à mesa com ele, em silêncio. Vez por outra papai caçoava de suas memórias, porém, devido ao respeito que tinha ao velho, nunca se permitiu fazer, a esse propósito, pilhérias grosseiras. As vezes, quando vinha muita gente com papai, meu avô suspirava e dizia: - "Bem, vou andando, virei outra vez." E esta outra vez era dentro de seis meses ou um ano. Antes não lhe era possível, pois pelo visto, isto constituía para ele uma experiência penosa. Por sua delicadeza e excepcional escrúpulo, vovô nunca indagou a meu pai sobre o destino de seu genro Redens, muito embora o destino da própria filha, Anna, a vida desfeita, dela e de seus filhos, muito o preocupasse. Sofria tudo calado e tranquilamente, assobiando alguma coisa, displicentemente, como era seu hábito. Ainda havia nele muito orgulho para ficar implorando ou insistindo em algum pedido. As pessoas sem amor-próprio, sem a consciência de sua dignidade, talvez não entendam isto. Como é possível estar ao lado de tal homem sem nada lhe pedir? Sim, nada...
Já vovó era, neste sentido, mais natural e mais primitiva. Sempre deixava acumular algumas reclamações e necessidades em relação aos problemas domésticos, para, no momento oportuno, recorrer inclusive a Vladímir Ilitch (11) (que tanto conhecia e estimava nossa família) e depois a papai.
E, muito embora a época do colapso econômico e do comunismo de guerra já houvesse acabado havia muito tempo, vovó, pela sua inadaptabilidade à "nova vida", muitas vezes se via em sérias dificuldades com relação às coisas mais essenciais. Mamãe se sentia constrangida de "surrupiar tudo de casa" para ajudar os parentes, inclusive por causa dos princípios morais que se impunha. Então frequentemente vovó, completamente desorientada, se dirigia a papai com um pedido como este, por exemplo: "Ah, Ióssif, imagine que eu não consigo encontrar vinagre em parte alguma!" Papai soltava uma gargalhada, mamãe se enfurecia e tudo afinal se acertava.
Depois da morte de mamãe, vovó se sentia constrangida em nossa casa. Morava com a gente ora em Zubálovo, ora no Kremlin, nos seus pequenos aposentos muito asseados, sozinha, no meio de seus velhos retratos e de suas velhas coisas, que a acompanhavam, de uma cidade a outra, durante toda a sua vida:velhos tapetes do Cáucaso, já puídos de uso, o mesmo estrado caucasiano, coberto com um tapete, tapetes também nas paredes, travesseiros e rolos, alguns baús seculares, bibelôs baratos de Petersburgo; tudo, no entanto, no maior asseio, ordem e arrumação. Eu adorava visita-la, sentia-se ali uma atmosfera tranquila, cálida e acolhedora, mas infinitamente triste. Que coisas alegres teria ela então para contar?
Mas a saúde e o amor à vida eram, nela, inesgotáveis. Já com seus 70 anos, tinha ainda uma aparência magnífica. De estatura pequena, andava sempre com a cabeça erguida e um ar altaneiro, o que talvez lhe desse a aparência de maior altura. Sempre com um vestido limpo, asseado, feito por ela própria de alguns outros trapos, infalivelmente com um rosário de âmbar enrolado no pulso da mão esquerda(12). Toda arrumada, penteada, ela era uma beleza; sem uma ruga, nenhum sinal de velhice. Por último, vinha sofrendo do coração, resultado das desgraças e sofrimentos morais. Ela, sofridamente, dava tratos à bola e não podia atinar com o motivo da prisão de sua filha Anna. Escrevia cartas a papai, entregava-as a mim e depois pedia-as de volta... Sabia que isso não ia adiantar coisa alguma. Ante as desgraças que atingiam nossa família, uma após outra, ela assumia uma atitude por assim dizer fatalista, como se as coisas não pudessem ser mesmo de outro jeito...
Morreu vovó no princípio da primavera de 1951, em consequência de um de seus espasmos, de modo inesperado: estava com 76 anos. Dois anciães solitários - vovô e vovó - não incomodavam ninguém com seus sofrimentos. E destes poucas pessoas tinham conhecimento: eles eram, com aqueles que os cercavam, amáveis e discretos. Penso que o provérbio espanhol se aplica bem a eles dois: "As árvores morrem de pé"!...
Eu sinto tanto agora - quando já tenho um filho adulto e tavez dentro de dois ou três anos terei também netos - que não os compreendesse antes. Enfim, será que os netos entendem seus avós, e os filhos, seus pais? Nós gostávamos mais de vovô: achavamos a vovó barulhenta, uma velha irriquieta. Ambos, no entanto, eram senhores da verdade e da pureza, cada qual a seu modo. E poderíamos nós, seus netos, lhes contrapor alguma qualidade nossa melhor que essas?...
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(1) publicação do Instituto Marx-Engels-Lenin, de Moscou, onde se conservam os originais. (2) Partido Operário Social-Democrata Russo(Russkaia Sotsial-Demokratitcheskaia Rabotchaia Pártia) (3)Na época, nome São Petersburgo, fundada por Pedro, o Grande, capital do império russo, depois se chamou Petrogrado, Leningrado e atualmente S.Petersburgo. (4)Procer soviético. Chegou a ser presidente do Presidium do Soviete Supremo da URSS, cargo equivalente ao de Presidente da República em regime parlamentar. (5) Nome empregado em russo para designar a capital da Geórgia. Parágrafos anteriores a autora empregou, para a mesma designação, a palavra Tibilisse, que corresponde à fonética georgiana. (6)expressões da língua georgiana (7)Gorro forrado de pele, , com abas prolongadas para proteger as orelhas. (8)Sinal de respeito e falta de intimidade, entre os russos. (9)Sigla extraída de soviet Naródnikh Komissárov (conselho de Comissários do Povo). (10)Lenin (11)tipo de rosário usado no oriente por muculmanos e pessoas de outras religiões.
Um comentário:
Prezada Aksínia
Meus parabéns pelo blog! É um verdadeiro show sobre a Rússia, um país que sempre me fascinou.
Agradeço também por me seguir!
Abraços, :-)
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