sexta-feira, 9 de abril de 2010

MAIS UMA CARTA DE SVETLANA ALLILUYEVA (filha de Stalin)


edição russa do livro

Achei esta carta da Svetlana especialíssima para os dias de terror que o mundo vem passando, com a barbárie imperando no Oriente Médio e na própria Rússia, onde crianças inocentes perdem a vida sem o mínimo direito de defesa. Nesta carta, Svetlana fala - além das relações do pai com os netos - de religião, de Deus, de Paz.Fala da inaceitabilidade de se atentar contra a vida humana, sob qualquer pretexto. Quem dera que os líderes mundiais também pensassem assim e não submetessem a vida humana a seus interesses escusos e mesquinhos....
Deixo vocês com a carta n. 6 da Svetlana: uma carta emocionante.

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Stalin, o filho e a filha Svetlana

Você já pode notar que, para toda a nossa família, a Geórgia era como sua pátria. Para todos - para meus avós, para mamãe, a Geórgia, com seu sol em abundância, com o temperamento ardente e a elegância inata de seus nobres e camponeses - uma região extraordinária, decantada pelos poetas russos - estava presente totalmente em nossa casa, e não porque era a pátria de meu pai. De todos era precisamente ele, talvez, quem menos a admirava. Amava a Rússia, amou a Sibéria com suas belezas austeras e sua gente silenciosa e rude, e não podia suportar aquelas "honrarias feudais" com que os georgianos o distinguiam. Só depois de velho é que passou a recordar a Geórgia.

É possível que essa identidade com a Geórgia tenha também desempenhado um papel no fato de que os parentes da primeira e já falecida mulher de papai, Ekaterina Svanidze, tinham tanta amizade a mamãe e a seus familiares. É possível que mamãe tenha sabido agir de tal modo que eles todos se sentiam a vontade com ela na casa de papai, ali onde ela era a dona da casa e papai apenas dava a sua presença, eternamente mergulhado até o fundo das paixões políticas, das lutas, discussões, divergências, reuniões...

Mas hoje não estou mais em condições de escrever sobre o passado; a vida atual, borbulhante, ofuscante e que de repente me cerca por todos os lados, não me deixa mais mergulhar nos dias do passado e me isolar num lugar qualquer...

Meu filho foi para Moscou, onde tem aula de física. Ele se prepara a fim de prestar exames no Instituto de Medicina. Estranhamente, meu pai conheceu e viu, de seus oito netos, somente três - meus filhos e a filha de Yacha. E embora ele fosse sempre injustamente frio para com Yacha, sua filha Galina despertava nele uma ternura sincera e, o que era ainda mais estranho, meu filho, meio judeu, filho de meu primeiro marido (a quem meu pai não quis sequer conhecer) despertava nele um terno amor. Lembro-me de como fiquei apavorada durante o primeiro encontro de papai com meu Oska. O garoto tinha cerca de três anos, era um menino adorável - mistura de grego e georgiano, os grandes olhos semitas, as longas pestanas. Parecia-me inevitável que o menino despertaria em papai um sentimento desagradável. Eu nada compreendia da lógica do coração. Papai literalmente se derreteu ao ver o garoto. Isso ocorreu em uma de suas esporádicas vindas, após a guerra, à despovoada, irreconhecivelmente silenciosa Zubálovo, onde viviam meu filho e duas aias - a dele e a minha, esta já velha e doente. Eu terminava o último ano da Universidade e vivia em Moscou, e o menino se criava sob o "meu" tradicional pinheiro e sob a guarda das duas bondosas velhinhas. Papai brincou com ele por meia hora, passeou em torno da casa (ou melhor, correu em torno dela, por que ele caminhava rapidamente, até seus últimos dias, com um ar lépido) e se foi. Eu fiquei "revivendo", "remoendo" o passado - estava no sétimo céu. Com seu laconismo, as palavras: "Teu filho é um amor! Os olhos dele são bonitos!" - equivaliam a uma longa ode de louvação nos lábios de outra pessoa. Eu compreendi que mal entendia a vida, cheia de surpresas. Papai viu Oska ainda mais duas vezes - da última vez, quatro meses antes de sua morte, quando o garoto tinha sete anos e já frequentava a escola. "Que olhos pensativos!" - disse papai. - "Garoto inteligente!" e eu de novo fiquei feliz.

É estranho que também Oska se lembrasse evidentemente desse último encontro e guardasse na memória a emoção daquele contato cordial que ocorreu entre ele e seu avô. Com todo o apoliticismo de sua mente jovem, típico da juventude atual, ele devia odiar tudo que se ligasse ao "culto da personalidade"*, todo o conjunto de fenômenos atribuídos a um indivíduo e esse próprio indivíduo.

Sim, ele odeia todo esse conjunto de fenômeoso, mas não os vincula, em seu espírito, ao nome de seu avô. Colocou o retrato do avô em sua escrivaninha. E ali se encontra já há alguns anos. Não interfiro em sua afeição e nem controlo seus sentimentos. É preciso confiar mais nas crianças. E de novo vejo que ainda mal compreendo a vida, cheia de surpresas...

E eis que meu filho já tem dezoito anos, concluiu o curso médio e de todas as profissões possíveis escolheu a mais humana - a de médico. Estou contente, loucamente contente que ele assim tenha decidido. Estou tão contente que até receio demonstrar-lhe isso - não vá ele mudar de idéia.

Ele é um rapaz bonito, carinhoso, meigo. Minha filha aqui corre pelo bosque com sua coleguinha - ambas, por equívoco, nasceram meninas. De cada uma delas Deus deveria criar um par de irmãos-gêmeos. Elas trepam nas árvores, nos muros, andam de velocípede, banham-se no córrego, dormem à noite em tenda armada junto à casa, amestram o gato e o cachorro, jogam basquetebol.

Meus dois filhos não sabem (e não precisam saber!) como me deleita a vida ao lado deles, como eles me educam e não eu a eles... Quanto me encanta que eles cresçam naquele mesmo bosque onde, não faz muito, também cresci, respirando aquele mesmo ar, com aquelas mesmas flores dos campos e pradors e, talvez, como eu também, guardando, para toda a vida, a lembrança desta Júkovka e de seus arredores, como a imagem da terra natal.

E eis que minha Katya, apesar de que papai gostava muito do pai dela (meu segundo marido), como de todos os Jdânov, não despertava nele qualquer sentimento particularmente terno.











os filhos de Svetlana, Katia e Oska (Yussef) .Yussef foi médico cardiologista, autor de muitos artigos e monografias sobre o tema. Nasceu em 1945 e morreu em 2 de novembro de 2008.

Ele só a viu uma única vez. Ela tinha dois anos e meio, tão engraçada, um botãozinho vermelho, com dois olhos grandes e escuros como cerejas. Ele se pos a rir quando a viu e continuou rindo a noite toda. Isto aconteceu a 8 de novembro de 1952, no dia do vigésimo aniversário da morte de mamãe. Não pronunciamos uma só palavra sobre esse aniversário e eu mesma não sei se papai se lembrou da data, mas eu não podia esquece-la. Nesse dia peguei as crianças e fui ve-lo na casa de campo (se bem que não era fácil fazer isso, pois nos últimos anos era muito difícil combinar com ele qualquer encontro).

Essa foi a penúltima vez em que o vi, uns quatro meses antes de sua morte. Parece que ele estava contente com a visita, naquela noite, e, como era de hábito, ficamos à mesa, repleta de gostosas iguarias - legumes frescos, frutas e nozes. Havia um bom vinho georgiano, legítimo, do campo, trazido somente para papai, nos últimos anos. Ele era um perito e por isso degustava-o em pequeninas taças. Mesmo que não bebesse nem um gole, tinha que haver sempre vinho à mesa, de variadas qualidades, e havia sempre um verdadeiro batalhão de garrafas. Embora sendo muito sóbrio no comer, e ele apenas remexesse e beliscasse algumas migalhas, a mesa tinha que ser farta. Esta era a regra. As crianças se entupiam de frutas e ele se mostrava contente. Gostava que os outros comessem, enquanto ele se contentava de ficar à mesa.


Por que me ocorreu de súbito a lembrança precisamente dessa noite? Porque foi essa a única vez em que estive junto com papai e meus dois filhos. Estava tão agradável, ele oferecendo vinho às crianças - hábito caucasiano -, e elas sem recusar nem fazer manhas, com um comportamento ótimo, e todos estavam satisfeitos. Teria ele querido esse encontro? Seria agradável para ele ficar conosco? Provavelmente. Todavia, no final se fatigou. Achava-se habituado à liberdade da solidão.

Nesses últimos vinte anos estavamos de tal modo desligados dele que era impossível nos reunirmos em qualquer aparente convívio familiar, de um lar, mesmo que esse desejo fosse mútuo. Mas esse desejo não existia. Entretanto, guardamos bem na memória essa noite, todos nós, inclusive meus filhos.

Estamos no momento sentados em nossa pequena varanda. Meu filho decorando física, minha filha lendo um romance de ficção-científica e o gato Mitchka ronronando em volta de nós. Faz calor. Silêncio. O bosque em derredor traz o zumbido das abelhas e das vespas. Florescem as tílias. O calor está quieto e abrasador. A natureza, tranquila, magniífica, em pleno esplendor. Completa seu ciclo rotineiro, sem ligar para nada e para ninguém. Senhor, como é maravilhoso Teu mundo, e como é perfeita cada folha de grama, cada flor e cada folhinha! E tu continuas a fortalecer e amparar o homem, nesta terrível e insensata multidão, onde somente a Natureza eterna e poderosa lhe dá força e consolo, equilíbrio espiritual e harmonia. Só mesmo os abandonados e amaldiçoados por Deus podem atentar contra a grandeza e a beleza do Mundo, podem pensar na completa destruição do que floresce, cresce e de tudo que dá alegria à vida. Como é aterrador que seja grande o número desses insensatos. Como é também aterrador o injusto fato mesmo de que esses insensatos possam imaginar um "objetivo", em nome do qual consideram a possibilidade de destruir a vida. Trate-se de seu próprio povo ou de um estranho, que seja o povo mais distante e desconhecido, será sempre um sacrilégio a simples intenção de destruir a vida, em nome de qualquer coisa...Em nome de que?

A miserável, a descalça, a desasseada, analfabeta camponesa, em qualquer país, sabe que isso não pode ser, que isso é inadmissível. Mas os civilizados pensam que sim. Indivíduos que se dizem marxistas - os comunistas da China - pensam até que tal coisa não só se pode fazer, como se deve.

No mundo acumulou-se tanta insensatez, tanta maldade, tanta má vontade, quanto progresso, inteligência, erudição, humanismo e amizade. As duas coisas estão na balança. E neste diabólico equilíbrio vivemos nós todos, nossos filhos, nossa geração, nosso século. É preciso que todos acreditem na força do Bem e da Boa Vontade.

Penso que, hoje, a crença em Deus nada mais é do que a crença no Bem e em tudo aquilo que é mais poderoso que o Mal, em tudo aquilo que, mais cedo ou mais tarde, triunfará, conquistará. A diversidade dos credos já hoje não tem importância, uma vez que as pessoas cultas já aprenderam a se compreender umas às outras, transpondo as fronteiras entre os países e os continentes, entre os idiomas e as raças. Quando o Papa João XXIII fez um apelo em favor da paz, ele a todos concitou a acreditar no triunfo do Bem, na vitória sobre a maldade humana. Incansavelmente, Nehru - grande humanista de nosso tempo e que representa a flor da inteligência de um povo - repete os princípios de Buda. Pela manutenção e fortalecimento da paz, sempre se bateu também a Igreja Ortodoxa, através de seus melhores pastyores, que são os mais completos oradores em defeza da paz.

Todas as divergências dogmáticas da religião hoje em dia, perdem sua significação. As pessoas mais depressa se dividem em grupos que acreditam na existência de Deus e em grupos dos que, em geral, acham desnecessãria a existência de Deus. Ao chegar eu aos trinta e cinco anos, jé um pouco vivida e experimentada, e tendo sido educada, desde criança, pela sociedade e pela família, no materialismo e no ateísmo, com tudo isto formo ao lado dos que pensam ser inconcebível a vida sem Deus. E me sinto muito feliz por isto me haver acontecido.
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*O "culto da personalidade" foi uma expressão surgida, durante o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, em 1956.Os dirigentes deste Partido, especialmente Khruschev, atribuiam todos os erros e crimes praticados no período stalinista ao endeusamento de Stalin.




















Yacha e a filha, Galina








Galina, falecida a 28/08/2007













I.S.Vlassik e os netos de Stalin nos inícios dos anos 40


Evgueni, filho de Yacha

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