domingo, 15 de janeiro de 2012

MIKHAIL GORBATCHÓV: PARTE 1 -UMA ENTREVISTA A GABRIEL GARCIA MÁRQUEZ

Hoje inicio uma série de posts sobre Mikhail Gorbatchov, o homem que é adorado por alguns destas bandas, ao passo que muitos russos o olham com certo repúdio, e tudo pelo mesmo motivo: o fim da URSS. Mar teria sido ele o culpado? Ele traiu o povo soviético ou apenas foi mais um idealista e reformador? 


No dia 08 de dezembro de 2011 completou 20 anos da assinatura do tratado de "Bielovieshskaya Pushcha", o acordo firmado entre os então dirigentes da Rússia, Ucrânia e Bielorrússia e que resultou no fim do sonho soviético. Este 'aniversário' de algo que colocou fronteiras entre irmãos, entre membros da mesma família, me deu a ideia de uma série de posts sobre Gorbatchov, líder soviético na época da assinatura do acordo. Vamos tentar fazer uma retrospectiva da vida do último presidente da URSS, deixando o julgamento a cargo de personalidades históricas e de russos, cujos depoimentos transcreveremos no post, bem como do próprio Gorbatchov.
Iniciamos, hoje, com uma entrevista dada por ele ao escritor colombiano Gabriel Garcia Márquez, escritor envolvido com o movimento socialista e muito amigo de Fidel Castro.

No entanto, antes da entrevista, necessário é uma palavrinha sobre Bielovieshskaya Pushcha. Provavelmente muitos leitores não fazem ideia do porque do acordo ter tal nome. Ele foi assinado exatamente numa localidade chamada Bilovieshskaya Pushcha. Trata-se de um parque nacional situado na República da Bielorrússia onde os dirigentes soviéticos costumavam praticar a caça.Esta reserva data da pré-história e abriga mais de 900 espécies de plantas e 250 espécies raras de animais e aves, sendo, por isso, uma grande atração turística.Fica a 340 km de Minsk, a capital do país.
Belovezhskaya Pushcha já foi palco de muitas batalhas ao longo da histórica, como a guerra napoleônica e as duas guerras mundiais, acontecimentos que prejudicaram e muito a floresta. Em 1944 uma parte de Bielovieshskaya Pushcha foi dada à Polônia, em 1992, foi tombada como Patrimônio Mundial da Unesco.Em 1993 alcançou o status de Reserva da Biosfera, também da Unesco.


 Museu da Natureza

Sua importância é tanta para a Bielorrússia e URSS, que se transformou em canção de mesmo nome, a seguir interpretada pelo grupo soviético-bielorrusso Pesnyari. Ela fala de antepassados, de flores, floresta, pássaros e séculos distantes. Muito linda.

Mais a respeito da reserva ver aqui: http://migre.me/7y5hy


Foi exatamente neste local paradisíaco que assinaram o acordo histórico. Entre os signatários do que hoje é considerado, pelo líder do Partido Comunista Russo,  uma traição ao povo soviético, estavam o líder russo da época, Boris Yeltsin,o líder bielorrusso - Stanislav Shushkevich e o ucraniano, Leonid Kravchuk. Na oportunidade acertaram tudo para a criação do CEI (Comunidade dos Estados Independentes (segundo Vladímir Putin, o fim da URSS como "a maior catástrofe geopolítica do século XX", a CEI foi o mecanismo de "divórcio civilizado" entre as repúblicas do bloco soviético).
Foi aí que pronunciaram a frase fatal:
"Declaramos que a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, como sujeito do direito internacional e realidade geopolítica, deixa de existir". 
Stanislav Shushkevich afirmou, recentemente, que Gorbatchov fazia esforços para preservar a União e que ele não havia sido consultado quanto ao acordo.
Gorbatchov era, cima de tudo, um comunista, conforme ele próprio declarou, em 4 de junho de 1990, em entrevista para a revista Time:
"Eu sou um comunista. Sei que essa declaração, hoje em dia, não entusiasma ninguém, mas também não deixa mais as pessoas em pânico. Para mim, ser comunista representa colocar os valores humanos universais acima de todas as coisas".
 Considerações feitas, continuamos com o assunto central do post: Gorbatchov e sua entrevista ao escritor latino americano, como uma introdução ao pensamento do responsável pela abertura no regime comunista soviético e, para muitos, pelo fim da grande potência,  fiel da balança para conter os desvarios de poder dos EUA.Suas idéias estão ainda atuais e podem ser aplicadas a todo o mundo, num contexto bem amplo, independente de ser ou não culpado.

Garcia Márquez - Perestroika e glásnost são as palavras mais conhecidas em todo o mundo. São palavras exatas. Não são traduzidas para o espanhol, o francês e o inglês. O mundo inteiro as conhece na sua versão russa.

Gorbatchov -O sentido mais amplo da palavra perestróika não reflete apenas os problemas mais maduros a serem solucionados em nosso país. Podemos dizer que o mundo inteiro precisa de perestróika, isto é, de mudanças qualitativas, de um desenvolvimento progressista. As pessoas precisam saber onde estão, compreender os problemas que inquietam a humanidade, se conscientizar de como viver daqui para frente. Ao que parece, os cientistas não dispõem de dados sobre a existência ou não, em alguma outra parte do universo, de uma civilização tão racional quanto a nossa. Então, será que não temos sabedoria para chegar a um entendimento, para impedir que o mundo exploda, só porque somos diferentes?

Garcia Márquez - Se a perestróika que vocês empreenderam for levada às últimas consequências, será o acontecimento mais importante da história contemporânea. Tenho muitos amigos na América Latina que compreendem e se entusiasmam com o que vocês estão realizando. Também há os que duvidam do êxito da perestróika. Provavelmente, para vocês não deve ser fácil compreender as diversas reações do mundo face aos processos que se operam em seu país.

 Gorbatchov -Nós, naturalmente, acompanhamos a reação do mundo, verificamos a ressonância do que fazemos, do que oferecemos ao nosso povo. Queremos levar nossa sociedade ao auge, dar-lhe nossa qualidade a partir dos valores do socialismo e dos valores humanos em geral. E o caminho para isso é desenvolver a democracia, ampliar a incorporação do homem, dos trabalhadores à vida social, aos processos em curso. Este é um aspecto da questão. O outro consiste  em que a nossa política externa é uma continuação da interna. Nossa política externa tem como base esses novos enfoques, a manutenção de uma ligação viva com os processos que se desenvolvem em nosso país. Isto quer dizer que também nossa política externa dá prioridade aos interesses do homem, aos valores humanos. Assim, não nos pode ser indiferente a maneira como o mundo acolhe o que fazemos. Nós queremos falar honradamente ao mundo sobre nossos planos, nossas questões.  E não nos orientamos por nenhum tipo de ambição ou vaidade; não o fazemos para agradar a este ou aquele, para produzir uma impressão favorável. Nossa sociedade amadureceu para mudanças, e se não o  fizéssemos nós, da atual direção, outros o fariam. A perestroika é difícil e complexa, mas é um processo necessário, socialmente condicionado. Transformamos os novos modelos de focalizar os problemas internos em iniciativas de política externa. Não são slogans, mas proposições práticas reais. Em dois anos, fizemos muitas propostas nessa direção e a submetemos ao julgamento da comunidade internacional. Não pretendemos ser os donos da verdade absoluta. Contamos com as opiniões dos demais. Isto é o que chamamos nova mentalidade. Precisamos aprender a nos entender, a levar em conta os interesses de cada Estado e a respeitar os interesses de cada povo. Que cada um demonstre suas vantagens dentro de toda diversidade do mundo moderno, mas através de meios pacíficos, da colaboração mútua. Ao dizer isto, não ocultamos nossa convicção de que é precisamente o socialismo que oferece possibilidades imensas e perspectivas ao homem.
Achamos que o socialismo é melhor, mas não impomos nossas convicções a ninguém, que cada um escolha o caminho que quiser, porque a história se encarregará de colocar cada um em seu lugar. Está claro que nós não improvisamos, embora hoje necessitemos de muita imaginação. Realizamos nossa obra a partir da análise científica, comprovada pelas concepções de política interna e externa. Estamos convencidos de que a humanidade chegou a uma etapa em que todos dependemos uns dos outros. 
Não se pode separar um país e outro, um povo de outro e, muito menos, contrapô-los. Em nosso jargão comunista, isto recebe o nome de internacionalismo, que coincide com o fortalecimento, que recorre ao sangue dos povos, nega-se a respeitar o caminho que eles escolheram para seguir e vê em continentes inteiros um feudo seu. Para o imperialismo, a perestroika nas relações internacionais é uma espinha entalada na garganta.Mas ela é necessária a este mundo tão entulhado de armas nucleares, mundo que tem sérios problemas econômicos e ecológicos, no qual existem a pobreza, o atraso, as doenças. Mundo no qual se criou uma gigantesca indústria de informação - e você sabe como ela influi na mente humana.
Nós consideramos que é preciso aprender a vincular os interesses nacionais às tarefas gerais do gênero humano.Nossa política não tem uma dupla face. Temos a consciência limpa. Nossa filosofia a respeito das relações internacionais não está em contradição com o senso comum. Ela se baseia numa profunda análise científica dos processos e na rigorosa atenção aos interesses do povo trabalhador. É a filosofia que propomos a todo o mundo. Sabemos que nossa política não desperta apenas curiosidade, mas também um profundo interesse. O mundo está cansado da tensão e todos aspiram melhorar.
Sabemos que as perspectivas que oferecemos não convém a determinadas pessoas. Dizem que nossa visão do mundo é utopia e, assim, procuram não acreditar na nossa política e em nossa orientação atuais. Sabemos tudo isso. Mas, apesar de tudo, o mundo muda. Cresce a tendência ao entendimento mútuo, ao diálogo. Isto nos anima.

Garcia Márquez -Fico grato pelo que acaba de dizer. não pode imaginar como a situação atual do mundo me deixou preocupado. Suas  manifestações coincidem com o que penso e ouvi de meus amigos na América Latina. Elas confirmam tudo o que penso a respeito do processo em seu país, de sua política. Para mim é importante sentir que tudo o que você diz e faz é sincero. Mas, como os inimigos de vocês, também sentem esta sinceridade,  e isso os apavora, temo que as ações que venham a praticar no futuro sejam mais perigosas. Eu desejava muito vir à União Soviética agora. Estive pela primeira vez em seu país em 1957, no Festival da Juventude. As mudanças que ocorriam naquela época também me emocionavam, assim como a meus amigos soviéticos. As pessoas festejavam o começo das mudanças e parecia a elas que tudo mudaria rapidamente. Hoje, 30 anos depois, sinto grande diferença no comportamento das pessoas em relação às mudanças. Sentem-nas com a mesma alegria, mas sabem que não se trata de uma festa, mas de um tenso trabalho da mente. São reflexões profundas e difíceis. Não há o otimismo cego que existia em 1957. Hoje eu percebo um otimismo consciente e uma grande tensão. As pessoas compreendem que é preciso atuar, dar sua compreensão à perestroika. Mas também sinto receios: e se não der certo? Tudo isto é sincero. Ninguém duvida da  sinceridade da política da perestroika. Todos sentem que tudo é sério, especialmente no mundo dos intelectuais, entre os escritores, em cujo meio tenho  muitos amigos. Um pensamento domina a todos: nem um passo atrás!

 Gorbatchov -Bem dito!


Garcia Márquez -Pode ter a certeza de que os intelectuais da América Latina estão com vocês. Lá, todos acompanham com o maior interesse o que está ocorrendo na União Soviética, a perestroika de vocês. Sou um escritor e expresso os sentimentos que me emocionam. Quero afirmar que sinto carinho e profundo respeito pelos soviéticos.

 Gorbatchov -Obrigado. Sentimo-nos felizes de ter você como um partidário da perestroika e nosso amigo.


Garcia Márquez -Esta entrevista foi o mais importante acontecimento de minha vida nos últimos anos. Sinto-me feliz de estar aqui.


 Gorbatchov -Seu prestígio em nosso país é enorme Acredito que seus livros publicados na União Soviética tenham tido uma tiragem maior que nos outros países. Você tem muitos leitores em nosso país.


Garcia Márquez -Sim, sei que as edições de meus livros em russo só são menores que as em espanhol. 



 Gorbatchov -Nos últimos dias reuni-me com os dirigentes de nossos meios de comunicação e das Uniões de intelectuais. Foi uma conversa interessante. Nela, eu disse que atribuímos grande importância à glasnost, ao desenvolvimento da democracia, pois isso possibilita ao homem soviético abrir-se inteiramente. As pessoas começaram a falar. Têm o que dizer uns aos outros e ao governo. É inestimável o que perdemos porque, numa determinada etapa, se freou o desenvolvimento da democracia. Embora deva ficar claro que também  nesse campo já tenhamos alcançado a um nível elevado. Somos um povo mais instruído, amamos nossa pátria. Assim, é importante incorporar o povo ao processo da perstroika, desenvolver a democracia em todos os sentidos.(...). Sem o aperfeiçoamento dos processos na esfera cultural, na esfera da democracia, sem a consolidação dos valores socialistas humanos, a perestroika não avançará.(...). Um verdadeiro artista é aquele para quem a sorte do povo, a vontade do povo, não é indiferente. Quando li Cem anos de Solidão e outros livros seus,  notei que neles não há esquemas, que estão cheios de amor pelas pessoas, pela humanidade. Penso que é preciso levar em conta cada dia vivido depois da Revolução de Outubro. E os dias mais difíceis não foram vividos em vão. 
Tudo isto é nossa História. Por acaso se pode permitir falta de respeito para com as gerações que criaram as bases do socialismo, que nos legaram a possibilidade de hoje avançar? É claro que houve erros, e inclusive tragédias. Mas, se for observado o que conquistamos graças aos esforços do Partido e do povo, verificaremos que os resultados são enormes. Não há povo sem raízes históricas. Uma árvore sem raízes seca e morre.
 Garcia Márquez -A nostalgia é uma armadilha perigosa, mas só assim compreendemos que o fundamental é não viver em vão e tornar a vida melhor para as pessoas. Tudo o que você disse me afeta profundamente, me obriga a pensar na sorte de meu país, da américa Latina. Lá há um interesse enorme por política. Espero que visite logo a América Latina.
  
Gorbatchov -A América Latina e sua sorte me interessam muito. Um continente de enormes possibilidades e contradições. Apesar de todas as dificuldades, os povos latino-americanos aspiram fortemente a um futuro melhor. Mas os obstáculos são grandes e você os conhece. O caminho da liberdade é um caminho difícil. Não obstante, estou convencido de que a América Latina avançará cada vez mais no caminho do progresso. Espero conhecê-la mais de perto.



Garcia Márquez -Sua visita à América Latina é muito importante para todas as forças progressistas do continente. Agora, quero agradecer por ter me proporcionado este encontro: parto de Moscou muito mais animado do que estava antes de vir para cá.
  
Gorbatchov -Encontro que para mim também foi um prazer. Nas condições atuais, quando o mundo se vê numa histórica encruzilhada, a palavra de importantes personalidades da cultura mundial é de enorme importância. É mais poderosa que as armas. Ajuda a compreender para onde o mundo caminha, como construí-lo, como proteger a civilização e a vida na Terra. As pessoas prestam atenção ao que você diz, ao que você escreve. Desejo-lhe novos êxitos e espero voltar a vê-lo outras vezes.
 
 "Mais coragem companheiros: a glasnost é a nossa força!"

obs: opetei por grafar o nome do ex presidente soviético Gorbatchov e não Gorvachev, como usualmente é transliterado, já que em russo se escreve Горбачёв e a letra ё tem o som "iô" e após uma chiante, como no caso da letra Ч -seu som é ô.

Fontes: 
http://www.my-ussr.ru/soviet-posters/
www.yandex.ru
Jornal do Brasil, edição de 15/08/87 
http://jornaldeangola.sapo.ao/

Nenhum comentário:

GOSTOU DO BLOG? LINK ME

www.russiashow.blogspot.coms