segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

O POBREZINHO NA CASA DE CRISTO NO DIA DE NATAL (DOSTOIEVSKI)


 Esta época do ano sempre me trouxe um misto de tristeza e de alegria. Alegria óbvia, gerada pelas festividades, pela confraternização com família e amigos, pelo consumismo exacerbado, representado na troca de presentes... Tristeza -  sentimento que nasce do meu lado mais humano, ao ver a injustiça que esta época representa ou  evidência aos píncaros da falta de humanidade,principalmente para os  pequeninos desvalidos, muitas vezes sem um teto e uma família, que devem se perguntar "porque Papai Noel" não se lembra de mim?". Na cabecinha destas crianças não deve passar que a culpa é de um sistema injusto e cruel, que os exclui, os ignora, enquanto beneficia, até em excesso, os que nasceram em "berço esplêndido" (e, as vezes, nem tão esplêndido, mas que têm pais que se enforcam na armadilha dos cartões de crédito)...

O post de hoje é uma história de Dostoievski a este respeito.  Mais uma vez o grande mestre de São Petersburgo  mostra que quem é realmente bom está sempre atual.Você, brasileiro, que está lendo este conto há de perceber que a coisa poderia muito bem estar se passando em alguma de nossas grandes cidades, não fosse o frio russo que marca o Natal do personagenzinho da história. A época poderia muito bem ser nossos dias e não o século XIX...A criança poderia estar vivendo sob este capitalismo selvagem e não sob o czarismo dos tempos do autor...Leia e conclua você mesmo!

Sou novelista e é preciso que escreva sempre "histórias".  Eis aqui que compus uma em todas as suas partes:  mas imagino sempre que realmente deve ter acontecido em algum lugar na véspera do Natal em alguma grande cidade, debaixo de um frio horrível.

Meu herói é um menino muito novo ainda, rapazinho de seis anos ou menos, muito jovem ainda, portanto, para mendigar. Daqui a dois anos é muito provável que o enviem, de qualquer maneira, a estender a mão.
Certa manhã acorda em uma adega úmida e fria.Traz uma roupinha fina e treme de frio. Quando respira, sai-lhe da boca uma fumaça branca com que se diverte. Mas dentro em pouco sente fome. Perto dele, deitada em um colchão fino como uma bolacha, tendo por travesseiro um embrulho, está a mãe doente. Por que ali se encontram? Sem dúvida, chegaram de algum povoado distante, e pouco depois ela caiu doente. A proprietária do sinistro alojamento foi presa há dois dias pela polícia. Os inquilinos dispersaram-se; só ficaram um vendedor de roupas velhas e uma velha duns oitenta anos; aquele está estendido no chão, completamente embriagado, pois nos achamos no período das festas. A velha, talvez antiga ama, está a morrer num canto. Como quem está a morrer geme, o menino não se atreve a aproximar-se do colchão dela. Encontrou um pouco de água para beber, mas não descobre o pão, e, pela segunda vez, vai para perto da mãe para acordá-la.
Assim passa o dia. Chega a noite e ninguém traz uma luz. O menino aproxima-se novamente da mãe, tateia-lhe o rosto na escuridão e fica assombrado de achá-lo tão frio como a parede. O corpo parece inerte.
"É que faz muito frio aqui" - murmura e espera, esquecendo a mão sobre o ombro da morta... Depois endireita o corpo e sobra os dedos para aquecê-los. Dá alguns passos e acode-lhe a idéia de sair da adega. Chega até a porta tateando; na escada fica com medo de um cachorro que ladra todos os dias em algum lugar, sobre os degraus; mas o cachorro está ausente. O menino continua a andar e chega à rua.
Meu Deus, que cidade! Até então nunca tinha visto nada de semelhante. Lá longe, na terra donde tinha vindo já há algum tempo, não se ascendia de noite em cada rua escura mais de um lampião. As casinhas de madeira, muito baixas, estavam todas com as janelas fechadas. Quando caía a noite não se via ninguém nas ruas; todos os habitantes fechavam-se nas casas; só se encontravam nas ruas bandos de cachorros que ladravam dentro da noite sombria. Mas como era quente a casa em que morava! E lá longe davam-lhe o que comer! Ah! Se aqui fosse possível somente comer! 
Mas... que barulho nesta cidade e que luz! Quanta gente circulando naquela claridade! E quantos carros, e que barulho faziam! Mas sobretudo, que frio! Que frio! E a fome que voltava a ataca-lo! Que dor que causavam as suas garras... Um agente policial passou e virou a cara para não ver o pequeno vagabundo. Outra rua agora:como é larga! Ah, ali, com certeza, vão esmagá-lo! Aquele movimento enlouquece, aquela luz o deslumbra.
Mas... o que está ali, por trás daquela grande vidraça iluminada? Vê a bonita residência e dentro uma árvore que chega até o teto. É a árvore de Natal toda semeada de pontinhos de fogo! Vêem-se pendurados papéis dourados e maçãs, brinquedos, bonecas, cavalos de madeira ou de papelão. Por todos os lados, na casa, correm meninos vestidos e adornados esplendidamente. Riem, brincam, bebem, comem! Lá está uma linda menina que se põe a dançar com um menino; que menina tão linda!Através dos vidros ouve-se a música. O pobrezinho olha e fica espantado; chegaria quase a rir, mas doem-lhe demasiadamente as mãos e os pés. Como estão vermelhas as mãos! Não é capaz de dobrar os dedos. Sofre demais para ficar ali; corre o mais que pode. Mas dá com outra janela ainda mais resplandescente do que a primeira. A curiosidade pode mais do que a dor. Que formosa habitação descobre! Ainda mais maravilhosa do que a primeira. A árvore está constelada, como o firmamento; sobre as mesas vêem-se pastéis de todas as qualidades; amarelos, encarnados, multicores; quatro formosas damas, luxuosamente vestidas, estão perto das mesas e os oferecem a todos os que se aproximam; a cada instante abre-se a porta e entram cavalheiros. O menino aproxima-se furtivamente, aproveita um momento em que a porta se entreabre e aparece dentro do salão. Oh!, seria preciso ver como o recebem! É uma tempestade de invectivas; as pessoas chegam mesmo a levantar as mãos contra ele.  Uma senhora aproxima-se do pequeno, mete-lhe um copeque na mão e o põe delicadamente à porta.Que susto que teve! E o copeque escapa-lhe dos dedos vermelhos, que não pode dobrar. Corre, corre; nem mesmo sabe para onde.  Queria chorar mas não podeia; teve medo demais...Corre e sopra sobre os dedos, inteiramente doloridos. Aumenta o medo. Sente-se tão só! Está completamente perdido na cidade. Mas logo pára novamente. Santo Deus... o que é que descobre desta vez? O espetáculo é tão formoso, que há uma multidão parada a admirá-lo. Por trás da vidraça de uma janela, três maravilhosos bonecos, vestidos de vermelho e verde, movem-se como se estivessem vivos! Um parece velho e toca violoncelo; os outros dois tocam violino, marcando o compasso com a cabeça. parece que se olham e movem os lábios como se falassem, mas não é possível ouvir através dos vidros.  O menino acredita, a princípio que os bonecos vivem; passou-se algum tempo para compreender que eram brinquedos. Riem de satisfação. Que bonecos tão formosos! jamais havia visto bonecos assim, nem mesmo suspeitara que pudessem existir. Ri e quase sente desejo de chorar; mas... seria ridículo demais chorar por causa de uns bonecos. De repente sente que lhe agarram as pobres roupas e o sacodem. Um pequenote de cara má dá-lhe bofetões, tira-lhe o gorro e o ataca a pontapés. Cai na calçada; ouve gritos; levanta-se e deita a correr, a correr...até que descobre um pátio sombrio, onde vai ocultar-se atrás de um monte de lenha. Volta a cair no esconderijo; sofre, não pode conseguir respirar; sufoca, sufora... e de repente, como é estranho! sente-se muito bem, curado de tudo; mesmo as mãozinhas que não doem mais. E sente calor: suave calor que o invade como se estivesse perto de uma lareira. Adormece! Como é suave o sono que dele se apodera! "Vou ficar aqui um pouquinho e depois volto para ver os bonecos". Mas ouve a voz da mãe - que, não obstante, está morta - a cantar perto dele. "Ah, mamãe, estou dormindo! Como é bom dormir aqui!"
...................................................................................................................................................
Vem a minha casa ver a árvore do Natal - murmura por cima dele uma voz suave.A princípio acreditou que continuava a ser a mãe dele; mas não, não era. Quem, então, lhe falava? Não sabia...Mas alguém se inclinou sobre ele  e beijou-o... e de repente... que luz! Que árvore de Natal também! Jamais havia sonhado com semelhante arvore do Natal! Tudo brilha, tudo resplandece, e ei-lo cercado de meninos e meninas que parecem radiantes de luz e giram a dar voltas em roda dele, beijam-no, levantam-no e o levam embora; flutua, como os outros, na claridade, e a mãe está muito perto olhando-o e sorrindo alegremente.
- Mamãe, mamãe! Ah! como é bonito"! grita o menino. 
E beija mais uma vez os companheiros e quer contar o que os bonecos faziam por trás da vidraça iluminada. Mas certa curiosidade o domina: 
 - Quem são vocês, meninos e meninas?
- Somos os convidados que viemos ver a árvore de Natal, respondem. Cristo tem sempre no Natal uma bela árvore para as crianças que não a têm. 
E fica sabendo que todas aquelas crianças tinham sido tão desgraçadas como ele. Descobriram-se uns gelados nos cestos em que os haviam abandonado na rua; outros foram asfixiados por amas-de-leite finlandesas; outros morreram nos asilos; outros, ainda; pereceram de fome ao colo das mães durante a escassez de Samara; e ali estavam todos transformados em anjos por obra de Cristo, que aí estava entre eles, sorrindo e abençoando-os, a eles e às mães pecadoras. Pois também elas ali estavam, e os filhos querem correr para elas e beijá-las, enxugar-lhes as lágrimas com as mãozinhas e pedir-lhes  que não chorem , visto serem agora tão felizes...
De manhã os criados encontraram por trás do monte de lenha o cadáver gelado do menino; encontraram também a mãe morta na adega. Os dois, agora, ficai sabendo, voltaram a encontrar-se diante de Deus...
Porque escrevi esta história pueril, que produz efeito singular no livro de escritor sério? "Eu, que havia prometido só contar nesta obrra o que se passara na realidade!"
Mas aí está!... Parece-me que tudo isso podia ter realmente acontecido...Principalmente o achado dos dois cadáveres...Quanto a árvore do Natal - Deus meu! não sou novelista para inventar qualquer história?

fonte:
Diário de Um Escritor

Nenhum comentário:

GOSTOU DO BLOG? LINK ME

www.russiashow.blogspot.coms