Tempos atrás, andei postando as cartas de Svetlana Alliluyeva, a filha de Stalin, extraídas do livro "20 cartas a um amigo", livro raro, muito difícil de ser encontrado. Hoje posto mais uma carta, a de número 18, na qual Svetlana opina sobre seu pai se achar ou não um verdadeiro deus. e relata fatos de seus últimos tempos de vida..Se, por um lado, Svetlana era ligada a Stalin por um forte afeto, talvez até maior do que o que sentia por sua mãe,por outro, ela tinha consciência de seus defeitos, de suas crueldades, de suas amantes, de seus 'pileques'; enfim, acredito que suas cartas tenham certo grau de imparcialidade e que esta carta, em especial, nos dê uma boa imagem do Stalin existente por de trás da 'monumental propaganda', com o devido desconto que toda opinião comprometida por laços afetivos deve sempre ter...
"Quando tenho de ouvir e ler, agora, em nossos dias, que meu pai, durante a vida, considerava-se a si mesmo um verdadeiro deus, estranho profundamente que isso possa ser afirmado por aquelas pessoas que o conheceram de perto...
È certo que papai nunca se distinguiu pelo democratismo, porém jamais se imaginou Deus...
Nos últimos tempos viveu muito isolado; a viagem ao Sul, em 1951, foi a última. Não mais saía de Moscou e, quase todo o tempo, ficava em Kúntsovo, que foi sucessivamente reconstruído. Nos últimos anos, ao lado da casa grande, construíram uma pequena casa de madeira-havia mais ar puro; no quarto com estufa, papai passava habitualmente seus dias. Ali não havia o menor luxo - apenas lambris de madeira nas paredes, e no assoalho um bom tapete - que eram objetos caros.
Todos os presentes que lhe mandavam de todos os recantos da terra, ele ordenou que os reunissem e transferissem para o museu - não por afetação ou atitude, como confirmam muitos - mas pela circunstância de que, na verdade, não sabia o que fazer de todas aquelas coisas, muitas das quais valiosas - quadros, porcelanas, móveis, armas, utensílios, roupas, peças de artesanato nacional - não saberia para que lhe serviria tudo aquilo...
Raramente dava-me alguma coisa - um traje nacional romeno ou búlgaro - porém, em geral, mesmo o que mandavam para mim, considerava inadmissível utiliza-lo na vida comum. Entendia que os sentimentos expressos em todas aquelas coisas eram simbólicos, cabendo portanto assim considera-los, isto é, como símbolos. Em 1950 foi aberto, em Moscou, um "museu de presentes".(*)
presente ofertado pelos republicanos espanhóis a Stalin
Ouvi, com freqüência, de senhoras conhecidas (tanto durante a vida de papai como depois de sua morte): "Ah! mas que belo conjunto de quarto ali! Que radiola! Será que não podiam dar aquilo a você?"
Depois de meu regresso da Geórgia, vi papai apenas duas vezes. Já falei de como, no aniversário da Revolução, no outono de 1952, fui visita-lo na casa de campo, levando as crianças. Estive ainda com ele a 21 de dezembro de 1952, no dia em que completou 73 anos. Nessa ocasião, vi-o pela última vez. Ele parecia abatido, naquele dia. Pelo visto, os sintomas da enfermidade, talvez hipertensão - desde que deixara inesperadamente de fumar e muito se orgulhava disto. Fumara durante nunca menos de cinqüenta anos. Tudo leva a crer que sentiu o aumento da pressão - porém não havia médico. Vinográdov fora preso e ele não confiava em ninguém e não admitia qualquer pessoa próxima dele. Tomava pílulas por conta própria, bebia algumas gotas de iôdo dissolvidas em um pouco d'água -não se sabe de onde havia tirado tais receitas de enfermeiro; ele mesmo, porém, fazia coisas inadmissíveis. Dois meses depois, vinte e quatro horas antes do colapso, estivera na sauna (construída num cômodo separado da casa de campo) e ali tomara banho de vapor, segundo seu velho hábito siberiano. Nenhum médico o permitiria, porém não havia médico...
O 'caso dos médicos' ocorreu no último inverno de sua vida. Velentina Vassílevna relatou-me (mais tarde, agora) que papai ficou muito amargurado com o rumo dos acontecimentos. Ouviu como o assunto fora discutido à mesa, durante o almoço. Ela servia à mesa, como de costume. Papai dizia não acreditar na 'desonestidade' deles, que isto era impossível _ pois a única 'prova' eram as denúncias do dr. Timachuk _ e todos os presentes, como de hábito em tais circunstâncias, se calavam...
É provável que, devido a sua moléstia, ele - por duas vezes, depois do XIX Congresso, em outubro de 1952 - exprimiu ao Comitê Central seu desejo de se aposentar. Este fato é bem conhecido dos membros do Comitê Central eleito naquele Congresso.
Valentina Vassílevna era muito parcial. Ela não queria que sobre papai caísse qualquer sombra. De todos os modos, vale a pena ouvir o que relata e tirar daí algumas conclusões - já que se achava em casa de meu pai nos últimos dezoito anos, enquanto eu só raramente ia lá...Muito me criticaram por isto. Diziam-me: "Porque não visitas teu pai? Telefona, pergunta; se diz não, telefona mais tarde, nalguma oportunidade ele encontrará tempo." Talvez que a observação fosse correta. Talvez tivesse sido demasiado escrupulosa e não insistisse. Porém, quando me respondia com raiva e voz irritada - "estou ocupado" e desligava o telefone - depois disto, durante meses a fio, não podia encontrar forças para ligar de novo.
Eis que não estava em sua casa pela última vez - claro que não sabia que era a última vez. A mesma demora à mesa, as mesmas figuras (**), as mesmas conversas habituais, os mesmos ditos chistosos, velhos de muitos anos. Esquisito - papai não fuma. Esquisito - tem o rosto avermelhado, apesar de que sempre fora pálido (pelo visto, já tinha havido um forte aumento da pressão). Ele, porém, como sempre, bebe pequenos goles de vinho georgiano -fraco, leve, aromático.
Tudo no quarto é estranho - nas paredes, retratos simplórios, de escritores, também o quadro sobre a gente de "Zaporojie"(***) fotografias de crianças recortadas de revistas...Mas, que há de estranho? Queria enfeitar as paredes, não deixa-las desnudas, mas pendurar ali pelo menos um dos milhares de quadros que lhe mandavam, considerava-o impossível. É certo que no canto do quarto achava-se pendurado um bordado chinês - um tigre enorme, em cores vivas - mas achava-se ali ainda nos tempos anteriores à guerra; já se tornara habitual.
A demora à mesa, como de costume; nada de novo. Como se o mundo em volta não existisse. Será que todas as pessoas que ali sentavam não tinham conhecimento, naquela mesma manhã, de algo novo e interessante de qualquer parte do mundo? Na verdade, dispunham de informações como ninguém mais. Mas não parecia.
Quando eu ia sair, papai chamou-me de lado e deu-me dinheiro. Começou a me dar dinheiro nos últimos anos, depois da reforma de 1947, que eliminou a manutenção gratuita das famílias dos membros do Bureeua Político. Até então, eu subsistia, de um modo geral, sem dinheiro, abstração feita do estipêndio da Universidade, eternamente fazia empréstimos às minhas "ricas" babás, que percebiam um salário considerável.
Depois de 1947, às vezes - em nossos raros encontros - papai perguntava: "Precisas de dinheiro?" - ao que eu respondia sempre "não". "Mentira!" - dizia ele - "de quanto precisas?"Não sabia o que dizer. Ele desconhecia o valor do dinheiro atual e o custo das coisas - vivia com noções de antes da Revolução, quando cem rublos representavam soma colossal. E quando me dava dois ou três mil rublos - não se sabe se era para um mês, meio ano ou duas semanas - considerava estar-me entregando milhões...
Todo o seu salário mensal era guardado em pacotes sobre a mesa - não sei se teria uma caderneta da Caixa Econômica; certamente que não. Não gastava dinheiro, não tinha onde nem em que. Todo o seu modo de vida:casa de campo, residência, empregados, alimentação, roupas - tudo era pago pelo Estado, para o que existia uma dependência especial no sistema do MGB e ali achava-se sua contabilidade e não se sabia quanto eles gastavam.Ele mesmo não sabia. Às vezes lançava-se contra os comandantes e generais de sua guarda, sobre Vlássik, com raiva: "Parasitas! Ei sei que vocês estão se aproveitando, sei quanto dinheiro está passando pela peneira"! Na verdade, ele não sabia, apenas intuitivamente, sentia que se evaporavam enormes recursos...Tentara, certa vez, efetuar uma inspeção de suas despesas de casa, mas disso nada resultou: impingiram-lhe umas cifras quaisquer inventadas. Ficou furioso, porém, ainda assim, nada conseguiu saber. Apesar de todo o seu poderio, era impotente, sem defesa contra um sistema monstruoso, criado em seu derredor como gigantesca teia - não podia quebra-lo e nem sequer controla-lo. O general Vlássik dispunha de milhões em nome dele, para obras, realização de longas viagens em trens especiais - meu pai, porém, não podia sequer esclarecer para onde, o que, quanto, a quem... Compreendia que, de todos os modos, eu devia precisar de dinheiro. Nos últimos tempos, eu estudava para defesa de tese na Academia de Ciências Sociais, que propiciava um bom estipêndio, o suficiente para assegurar minha subsistência. Ainda assim, papai de vez em quando me dava dinheiro e dizia: " Isto é para a filha do Yacha(1)"
Naquele inverno ele fez muito por mim. Então, eu me hvia divorciado do segundo marido e me separado da família Jdânov. Papai permitiu-me viver na cidade e não no Kremlin - deram-me um apartamento no qual vivo até o presente com as crianças. Ele, porém, encarou esse direito à sua maneira: muito bem, queres viver independente, então não mais utilizarás nem automóve e nem casa de campo oficiais.
"Toma aqui dinheiro - compra um carro, guia tu mesma e vais mostrar-me tua carteira de motorista"- disse. Isso me convinha integralmente. Dava-me alguma liberdade e a possibilidade de avistar-me normalmente com as pessoas; - vivendo de novo no Kremlin, em nosso antigo apartamento, isto seria absolutamente impossível.
Papai não se opôs quando disse que ia sair da casa dos Jdânov. "Faze o que quiseres" - foi a sua resposta. Ficou, porém, dscontente com o divórcio, que de modo algum lhe agradou...
"Vives como parasita, com tudo pago?" - perguntou, certa vez, irritado. Ao saber que eu pagava minhas refeições trazidas do refeitório, acalmou-se. Quando me mudei para meu apartamento da cidade, ficou contente: "Chega de viver de graça..."De modo geral, ninguém tão firmemente como ele tentou acostumar seus filhos à idéia da necessidade absoluta de viver às próprias sustas. "Casa de campo, apartamento e automóvel oficiais, tudo isto não te pertence, não consideres coisa tua", repetia-me com freqüência. Ainda agora, na última vez, deu-me um pacote de dinheiro e me lembrou: "Isto é para a filha do Yacha".
Retirei-me. Desejava voltar ainda uma vez no domingo, primeiro de março - porém não consegui falar-lhe pelo telefone. O sistema era muito complicado - primeiro era necessário telefonar para o chefe da guarda de plantão, que dizia "há movimento" ou "não há movimento", significando que papai dormia ou lia em seu quarto e não estava andando pela casa. Quando "não havia movimento",não se podia chama-lo ao telefone, papai podia estar dormindo durante o dia, a qualquer hora - seu regime de vida fora virado pelo avesso...
Na manhã de dois de março de 1953, chamaram-me da aula na Academia, e mandaram-me que fosse a Kúntsovo...Sobre isto já escrevi. Com isto comecei. Isto, porém, não é o fim. Ainda não quero terminar minhas cartas.
Finalizo o post com algumas imagens da dacha de Stalin em Kúntsovo, citada nesta carta de sua filha:
O sofá que se vê na penúltima foto trata-se de onde Stalin morreu.
NOTAS
(**)Nos últimos tempos, as figuras habituais que o visitavam eram Béria, Malenkov, Bulgaanin e Mikoyan. Aparecia, também, Khuschev. Desde 1949, depois da prisão de sua mulher, Molotov estava, de fato, afastado de todas as funções. Mesmo nos dias da enfermidade de papai, não o chamavam...Devo acresentar que, nesse último período, até os mais velhos e íntimos amigos de papai caíram em desgraça; o fiel Vlássik foi preso no inverno de 1957 e na mesma época, foi afastado de funções o secretário particular de papai, Poskrebíchev, que o tinha servido durante 20 anos, aproximadamente.
)1) Yacha era o filho de Stalin do primeiro casamento, morto sob Hitler, na guerra.Maiores detalhes sobre ele ver neste blog, no seguinte post:
http://russiashow.blogspot.com/2010/04/mais-uma-carta-de-svetlana-alliluyeva.html
Fontes:
- Livro "Vinte Cartas a Um Amigo"
http://www.kuncevo-online.ru/
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