sábado, 8 de janeiro de 2011

DE DIÁRIO DE UM ESCRITOR (DOSTOIEVSKI): QUADRINHOS (I)

Já postei há dias atrás sobre o livro "Diário de um escritor", de Dostoievski, difícil de ser encontrado no mercado editorial brasileiro. Hoje, deixo para o leitor amante da literatura russa, um trecho desta obra, intitulada "Quadrinhos". Escolhi este texto por ele falar de São Petersburgo, a cidade do meu coração. Mas Dostoievski, aqui, o faz de forma tão crítica, que chega a me lembrar Gógol, com seus textos que fazem desta minha cidade a vilã do norte. Acredito que o grande Dostoivski, o escritor maior no meu conceito, estivesse, no dia em que escreveu "Quadrinhos", num terrível mau humor! Tanto que critica a mistura arquitetônica da cidade, o que - para mim, é um de seus irresistíveis encantos. Que ele estava de mau humor - não restam dúvidas, tanto que, logo no início do texto, ele escreveu:
"Não é alívio, quando se está de mau humor, encontrar alguém ou algo a que se atribua a culpa?"
E a culpa caiu na princezinha do norte, a minha Piter querida...Deve ser levado, no entanto, em consideração, que Dostoievski era eslavófilo, desprezando toda e qualquer influência estrangeira na cultura e na vida russa, o que o redime de parte dos comentários. Além disto, ele é o mestre e a ele tudo é permitido. Malgrado descarregar sua bílis sobre esta fascinante cidade, o texto é incontestavelmente....dostoievskano, dispensando maiores comentários. Deixo, agora, que o leitor saboreie em sossego estas páginas do grande mestre russo.
"No verão temos férias, pó e calor - calor, pó e férias!É desagradável ficar na cidade. Todos os amigos já foram embora...E, por isso, para distrair-me, pus-me durante esse tempo a ler os manuscritos empilhados na sala de redação. Contudo, só me resignei à leitura em segundo lugar; a princípio passei o tempo a gemer, pensando na necessidade de ar puro, de liberdade temporal, no aborrecimento de encontrar as ruas hostis cheias de não sei que areia semelhante a barro pulverizado. E por isso fiquei olhando as ruas. Não é alívio, quando se está de mau humor, encontrar alguém ou algo a que se atribua a culpa?
Nos últimos dias atravessei a Avenida Nevski, do passeio ao sol, do passeio à sombra. É preciso atravessar sempre essa avenida com precaução, para evitar ser atropelado.(1) Olha-se para todos os lados, avança-se devagar, observa-se um claro entre os carros que sempre vêm em grupos de quatro ou cinco. No inverno, principalmente, é emocionante! Devido `a neve branca e à neve em flocos, expomo-nos, sempre, no momento em que menos esperamos, a descobrir a alguns centímetros do rosto, as narinas de um cavalo, rubras como um farol de trem, e de trem expresso, lançado a todo vapor contra as pessoas. É pesadelo inteiramente petersburguês! Ouve-se ao tempo exato, e quando se chega ao outro passeio, não se sente tanto a alegria de ter escapado a grande perigo como o prazer de tê-lo desafiado involuntariamente. Há poucos dias, com a prudência adquirida no inverno, estava atravessando a Avenida Nevski; como fiquei admirado quando vi que podia parar bem no meio da avenida, sentar-me com um amigo no asfalto e dissertar interminavelmente sobre a literatura russa. Com o calor e o pó, só via os sulcos das rodas riscando o chão e casas em construção ou reparação - as fachadas das casas da cidade reparam-se mais por chique do que pelo desejo de melhorá-las realmente. O que me chama sempre a atenção na arquitetura de nossa Capital é a falta de caráter e a mistura de casinhas de madeira em ruínas ao lado de edifícios imponentes e pretensiosos; tem-se a impressão de montes de tábuas mal preparadas segredando a verdadeiros palácios. Mas os palácios,por sua vez, não têm estilo verdadeiro. O que, também, é muito petersburguês...

I

Do ponto de vista arquitetônico,nada mais absurdo que São Petersburgo. É mistura incoerente de todas as escolas e de todas as épocas. Tudo tomado emprestado e tudo deformado. Entre nós as construções são como os livros. Tanto na arquitetura, quanto na literatura, assimilamos tudo quanto nos chega da Europa, permanecendo prisioneiros de nossos inspiradores. Veja-se o estilo, ou melhor, a falta de estilo, das igrejas do século passado: nada as caracteriza. Aqui a cópia miserável do estilo romano na moda do começo do século; ali o "renascimento", conforme o imaginou o arquiteto T.,que pretendeu te-lo renovado durante o último reinado. Mais adiante, aparece o "bizantino"Olhe-se, porém, para o outro lado e dá-se com o estilo de Napoleão I, pesado, falsamente majestoso e, sobretudo, profundamente fastidioso, um tanto grotesco, cujo gosto vai das abelhas de ouro a outros ornatos de beleza semelhante. Interpretemo-los agora. O que aí se vê são os palácios pertencentes às famílias nobres. Ergueram-se conforme modelos italianos e franceses (anteriores à Revolução). Outros mais antigos lembram os de Veneza. Meu Deus, como será melancólico ler mais adiante: "Restaurante com jardim" ou "Hotel francês"!Enfim, chegamos a construções enormes inteiramente contemporâneas; nelas triunfa o estilo americano: edifícios enormes que encerram centenas de habitações, abrigando também empresas industriais, vê-se logo que também temos estradas de ferro e convertemo-nos em "homens de negócios". Depois disso, tentemos definir a nossa arquitetura: é um caso que corresponde perfeitamente ao nosso caso atual. Mas de todos os estilos empregados, nenhum é tão lastimável como o que hoje prevalece. Dentro há de tudo: essas imensas casas para renda, de paredes de papelão e fachadas estranhas, possuem sacadas rococó e janelas semelhantes às do palácio dos Doges: não são capazes de suprimir um "olho-de-boi" e contam, invariavelmente, cinco andares. Mas dirão::"Querido, desejo absolutamente dispor de uma janela tão bela como as que os doges tinham." "Caramba! Valho tanto, com certeza como um doge: é também necessário que disponha de certo número de andares para amontoar os inquilinos que me proporcionarão o juro do dinheiro. Não posso, por simples questão de gosto, deixar o capital improdutivo!"
É bem curioso que este capítulo, em que comecei falando de manuscritos tenha-me conduzido a uma dissertação sobre assuntos bastante diferentes.
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Notas da Milu
(1) Interessante que, da primeira vez que estive na cidade tive a mesma impressão. Foi em 2002. O trânsito era caótico, presenciava trombadas a todo instante. Poucos anos depois, conseguiram regularizar o trânsito de maneira impressionante. Não que seja modelo, até porque, tudo o que é muito bem organizado não se adequa ao espírito surrealista da cidade. Mas já não é mais nada diferente do trânsito intenso das grandes cidades.


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