quarta-feira, 13 de outubro de 2010

VINTE CARTAS A UM AMIGO:CARTA N.10 - SVETLANA ALLILUYEVA

Retomando a publicação de posts relativos às cartas da filha de Stalin, do livro "Vinte Cartas a Um Amigo", há muito esgotado no Brasil, com sua carta de número 10, que trata das memórias de Svetlana da morte de sua mãe.

As demais cartas já postadas, você pode ler aqui.
"Lembro-me de como nós fomos, subitamente, mandadas a passeio. Lembro-me de como, à hora do desjejum, natália Konstantinovna enxugava os olhos, com um lencinho. Não entendemos por que nos deixaram passear durante tanto tempo. Depois, inesperadamente, fomos levados à casa de campo em Sokólovka, uma casa escura e sombria, para onde íamos sempre naquele outono, ao invés de visitarmos a querida Zubalovo.

Em Sokólovka, o ambiente era excessivamente sombrio, o grande salão do andar de baixo era escuro, por toda parte canto e recantos escuros. Fazia frio nos quartos estranhos e inconfortáveis. Mais tarde, ao anoitecer, K.E.Vorochílov veio ver-nos e levou-nos a passear. Tentou brincar conosco, mas ele mesmo estava chorando. Não me recordo de como me anunciaram a morte e como reagi a essa notícia...
Na certa, porque na época esse fato não alcançava ainda minha compreensão...

Eu só compreendi alguma coisa quando fui levada ao edifício em que agora funciona o GUM(1) e naquele tempo era, ainda, uma repartição pública. Na sala, estava exposto o caixão como o corpo para a visitação. Lá, eu fiquei terrivelmente amedrontada, porque Zina Ordjonikidze tomou-me nos braços e me aproximou do rosto da mamãe para "despedir-me". Foi então que eu devo ter notado a morte, porque fiquei aterrada e comecei a berrar, afastando-me daquele rosto. Logo em seguida, alguém me carregou nos braços para outro quarto. Lá o tio Avel Enukidze botou-me nos joelhos e começou a brincar comigo, a me encher de frutas e eu acabei por esquecer sua morte. Mas ao enterro já não me levaram; só foi Vassíly.

Mais tarde, quando já era adulta - contaram-me que papai ficou profundamente abalado pelo acontecimento. Ficou chocado porque não chegava a compreender. Porque razão? Porque foi ele alvo de tão terrível golpe? Ele havia interpretado aquilo como um golpe pelas costas. Era inteligente demais para não compreender que o suicida quer sempre "castigar" alguém: "pronto, isto é para você saber". Isto ele havia entendido, mas não conseguia localizar o motivo. Por que merecia tal castigo? E ele indagava aos circunstantes: não era ele atencioso? Não a amava e respeitava como esposa e ser humano? Será que era tão importante assim ele não poder leva-la mais vezes ao teatro? Será que isto era tão importante assim?

Sentiu-se chocado durante os primeiros dias. Dizia que não queria viver mais. (Contou-me isto a viúva do tio Pavlucha, que havia ficado em nossa casa nos primeiros dias - dia e noite - juntamente com Anna Sergueievna.) Temiam deixa-lo sozinho, tal o estado em que se encontrava. Houve momentos em que a raiva e o ódio tomavam conta dele. Isto explicava-se pela carta que mamãe havia deixado.

Evidentemente, ela a escreveu de noit. ´lógico que eu nunca cheguei a lê-la. Deve ter sido destruída logo. Mas ela existiu. Soube-o através de pessoas que viram a carta. Cheia de críticas e acusações, aquela carta terrível não teve cunho pessoal;era quase política. Ao lê-la,, papai deve ter pensado que mamãe permaneceu do seu lado apenas para manter as aparências, pertencendo, na verdade, a oposição da época.

Ele ficou abalado e enfurecido e, quando assistiu à cerimônia civil(2) de encomenda do corpo, aproximou-se do caixão por um minuto e, s´bito, empurrou-o com a mão, dando meia volta e partindo. Não compareceu ao enterro.

Mamãe foi enterrada pelos amigos e familiares. Atrás do caixão ia seu padrinho, tio Avel Enukidze.

Papai ficou perturbado durante muito tempo. Nem uma só vez visitou sua sepultura no cemitério Novadevitch. Não podia, ele achava que mamãe se fora como sua inimiga pessoal.













fonte da foto: http://vk-uzor.ru




















fonte foto:
http://www.aif.ru/article/index/article_id/18381

Só nos últimos anos, pouco antes de morrer, ele passou a falar-me com freqência sobre aquilo, deixandome completamente louca com isso...Eu percebia que ele buscava, angustiado, o "motivo", sem consegui-lo. Por vezes, enfurecia-se contra o "livrinho nojento", lido por mamae pouco antes de morrer: o então famoso "Chapé Verde, de Michael Arlen. Parecia-lhe que esse livro teria exercido grnade influência sobre ela...Ou ele começava a incriminar Palina Semionovna, Anna Sergueievna, Pavlucha que lhe havia trazido a pistola, quase de brinquedo...Ele buscava ao redor de si -"quem o culpado?" - "quem lhe inculcou aquela idéia?". Talvez quisesse, com isso, descobrir o seu próprio grande inimigo...

Entretanto, se ele não não a compreendia, mais tarde, passados 20 anos, deixou de entende-la por completo e esqueceu-se de como era ela... Ainda bem que, pelo menos agora, ele já começava a falar sobre ela com brandura. Parecia até que ele sentia pena dela e não a censurava mais pelo seu gesto...

Naqueles tempos eram frequentes os suicídios. Haviam acabado com o trotskismo. Começava a coletivização e o partido estava sendo dilacerado pela luta interna de grupos em oposição. Muitos militares destacados do Partido suicidavam-se, um atrás do outro. Recentemente, Maiakovsky havia cometido suicídio. Isto ainda não haviam esquecido, nem conseguido admitir.

Penso que isso tudo não podia deixar de refletir-se na alma de mamãe - pessoa muito impressionável e impulsiva. Todos os Alliluevs eram muito delicados, nervosos e demasiadamente sensíveis. Eram temperamento de artistas, não de políticos. "É impossível atrelar à mesma carroça um cavalo e uma sensível gazela", já dizia Puchkin.

Sim, não deveriam te-los atrelado juntos. Sucede que mamãe viveu e agiu sempre conforme as leis do sentimento. A lógica do seu caráter era a da poesia. Não havia Maiakovsky declarado pouco antes de morrer: "Eu não me lançarei ao abismo, não tomarei veneno e não poderei apertar o gatilho contra as têmporas"?E, ainda que afirmasse isso, foi o que exatamente fez.

Tais coisas ninguém planeja, antecipadamente. E, com todo o seu bom-senso, mamãe era uma mulher inteligente e papai respeitava-a, depositando nela uma confiança sem limites, considerando- a, até o dia da morte dela, o seu amigo mais próximo e fiel. Com toda a sua capacidade de organização e de auto-controle, mamãe era pessoa de sentimento ardente. Naqueles tempos as pessoas costumavam ser extremamente emotivas e sinceras. Quando era impossível viver desta forma, então se suicidavam... Quem age assim, hoje em dia? Quem, hoje, encara a vida, as discussões, as convicções próprias e as do inimigo, as possibilidades ou impossibilidades deste ou daquele assunto - com tamanho ardor?

O frio ceticismo dominou a todos: o ceticismo, a indiferença, a falta de interesse por tudo que de mais caro e importante existe. Bem ou mal, sobreviver...

Naquela época, as pessoas tinham uma outra maneira de viver. E mamãe foi o produto da época. Na certa, se ela não fosse tão jovem, tudo isso não teria acontecido. Mas com seus 31 anos de vida, não tinha alcançado ainda o tempo do raciocínio frio. Penso com freqüência sobre qual teria sido o seu destino, caso ela não tivesse morrido. Nada de bom a aguardava. Cedo ou tarde, ela estaria entre os adversários de papai. Impossível imaginar que ela pudesse permanecer calada, vendo como pereciam seus velhos e melhores amigos - N.I.Bukharin, A.S.Enukidze, Redens, os dois Svanidze. Ela nunca o teria suportado. É possível que o destino a tenha presenteado com a morte, salvando-a de desgraças maiores que a aguardavam. Pois ela não teria podido - "trêmula gazela" - impedir todas essas desgraças...
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(1)"Gossudarstvennyi Universalnyi Magazin, ou Magazin geral do Estado, um shopping center super lindo e luxuoso, que era privilégio dos membros do partido na época do comunismo. Hoje, seus preços são super elevados.
(2) Cerimônia não religiosa

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