quinta-feira, 27 de maio de 2010

TRECHO DE "CONFISSÃO", DE LIEV TOLSTOI




Neste post estou colocando um pequeno trecho do livro "Confissão", do gênio russo Liev Tolstoi.Que eu saiba, ele nunca foi publicado no Brasil. Este trecho traduzi de uma versão russa encontrada na internet. O livro é um espetáculo e vale a pena ser lido, em qualquer idioma que puderem ler. Tolstoi, além de genial, foi super corajoso, para abrir sua alma assim, da maneira que fez.Com este livro ele prova que foi, além de um grande escritor, um grande pensador também.




Escolhi este trecho intencionalmente, por te-lo achado super atual. Trata-se do porque deTolstoi ter abandonado a fé cristã tradicional. (ele chegou a ser excomungado pela Igreja Ortodoxa Russa).


I

Eu fui batizado e educado na fé cristã ortodoxa. Ensinaram-na a mim desde a infância e por todo o tempo da minha adolescência e juventude. Porém, quando tinha 18 anos e saí do segundo ano da universidade, eu já não acreditava em nada daquilo que me fora ensinado.
A julgar por algumas recordações, eu nunca acreditei seriamente, аpenas confiava no que me ensinavam e professavam diante de mim os maiores, mas essa confiança era muito vacilante.
Lembro-me que quando eu tinha uns 11 anos, um menino, falecido há tempos, Valodenka M. (1), que estudava no liceu, chegou a nós um domingo anunciando como última novidade uma descoberta feita no liceu. Esta descoberta consistia no fato de que Deus não existe e que tudo que nos ensinaram não passava de ficção (isto foi no ano de 1838). Recordo-me como os irmãos mais velhos se interessaram por esta notícia. Chamaram-me para participar da conversa. Nós todos, me lembro, nos animamos muito e aceitamos esta novidade como algo muito interessante e altamente possível provável.
Recordo-me, ainda, quando meu irmão mais velho – Dmitri, estudante universitário, de repente, com o entusiasmo inerente à sua natureza, entregou-se à fé e começou a ir a todos os ofícios religiosos, a jejuar, a levar uma vida pura e moral. Todos nós, até os mais velhos, não parávamos de rir às suas custas e, não sei por que, o chamávamos de “Noé”.
Lembro-me que Musin-Pushkin, o então ex-curador da Universidade de Kazan, nos chamou à sua casa para dançarmos e, ironicamente, persuadiu o irmão renunciante de que David dançou diante da arca. Eu me condoia com estas brincadeiras dos veteranos e tirei delas a conclusão de que ensinar catequese é preciso, ir à igreja é preciso, mas sem levar tudo demasiadamente a sério. Lembro, ainda, que eu era muito jovem quando li Voltaire, e seus escárnios não somente não me chocaram, como foram motivos de regozijo para mim.
O meu distanciamento da fé aconteceu para mim, da mesma forma como aconteceu e acontece agora às pessoas de nosso nível de instrução. Como me parece, ele ocorre, na maioria das vezes, assim: as pessoas vivem como todos vivem, mas vivem com base em princípios fundamentais, o que não só nada têm a ver com a fé, mas a maior parte das vezes se lhe opõem; a fé não participa da vida e nos relacionamentos com outras pessoas nunca é levada em consideração, muito menos em relação à própria vida.
A fé é professada em algum lugar longe da vida e independentemente dela. Se você se depara COM ela, será apenas como um fenômeno externo, desconectado da vida. Na vida de uma pessoa, em seus negócios, tanto agora, quanto em outros tempos, é absolutamente impossível saber se tal pessoa é crente ou não. Se existe diferença entre um ostensivo praticante ortodoxo e seu opositor, não será a favor dos primeiros. Assim agora, como em outros tempos, o explícito reconhecimento e profissão da ortodoxia foram, maior parte das vezes, encontrados em pessoas tolas, grosseiras e imorais e que se julgam muito importantes. A inteligência, a integridade, a retidão, o bom caráter e a moral foram encontrados, na maioria das vezes, em pessoas que se consideravam incrédulas.
Nas escolas ensinam catequese e enviam os alunos às igrejas; aos funcionários exigem comprovar o recebimento da comunhão. Mas alguém de nosso círculo, que já não estuda mais e não pertence ao serviço público, agora e em tempos passados ainda mais, poderia viver uma década sem se lembrar uma vez sequer que vive em um meio cristão e que ele próprio se considera um seguidor confesso da fé ortodoxa. Assim, tanto hoje como antes, o credo admitido com base na confiança e sustentado por pressões externas, gradualmente se desfaz sob a influência do conhecimento, das experiências de vida contrárias a este credo; a pessoa muitas vezes vive longo tempo convencida de que dentro dela a fé, que lhe foi transmitida desde a infância, está intacta, apesar de há muito dela já não haver rastos.
Contou-me S., homem franco e inteligente, como ele deixou de crer. Já há uns 26 anos, certa, vez estava ele em uma pousada, em temporada de caça, hábito adquirido deste o final da infância, quando tornou a noite para as orações. Seu irmão mais velho, que foi com ele à caça, deitou na relva e olhava para ele. Quando S. terminou e foi deitar-se, o irmão lhe disse: "Mas você ainda faz isto?" E não se disseram mais nada. S. deixou, desde este dia, de ajoelhar-se para as orações e de ir à igreja. E já há trinta anos não ora, não comunga e não vai à igreja. Não por conhecer as convicções do irmão e se ligar a elas, não por tomar alguma decisão em sua alma, mas apenas por ter sido a palavra “isto” dita pelo irmão como o simples toque de um dedo em uma parede que foi preparada para cair sob seu próprio peso; a palavra “isto” foi como a indicação de que lá, onde ele pensava existir a fé, já há muito tempo não havia nada e, portanto, as palavras que ele falava e as cruzes e posições de reverência em que ele se colocava durante as orações, eram completamente sem sentido. Conscientizando-se de seus absurdos, ele não poderia continuar agindo desta forma.
Assim foi e assim é, penso eu, com a grande maioria das pessoas. Eu me refiro às pessoas de nossa formação. Falo de pessoas honestas consigo próprias e não daquelas que fazem da fé um meio para consecução de um negócio temporal (estas pessoas são as mais radicalmente incrédulas, pois se a fé para elas é um meio de atingir um objetivo qualquer material, indubitavelmente, não é fé). Estas pessoas de nossa formação se encontram numa situação tal, como se a luz do conhecimento e da vida tivesse queimado um edifício artificial e eles ou já perceberam isto e liberaram o local ou ainda nem notaram o fato.
A fé a mim transmitida desde a infância desapareceu da mesma forma que em outras pessoas, com a única diferença que desde muito cedo eu comecei a ler e a pensar muito, o que fez o meu abandono da fé ser uma coisa consciente. Aos dezesseis anos parei de orar e parei, por conta própria, de ir à igreja e de jejuar. Eu parei de crer naquilo que me foi passado desde a infância, porém eu acreditava em algo. Em que eu acreditava, eu não poderia dizer. Eu acreditava em Deus, ou antes – eu não negava Deus, mas qual Deus, eu não poderia dizer; eu não negava, também, Cristo e seus ensinamentos, mas o que eram estes ensinamentos eu também não poderia dizer.

Escaneado por Leon Dotan www.ldn-knigi.narod.ru Crawl Leon www.ldn Dotan-knigi.narod.ru
Correção: Nina Dotan (Fevereiro de 2001)
Formatação: S. Vinitskiy
Título original: Ispoved' / (Исповедь)
Tradução: M.D.

Um comentário:

heloisaaquinonetto@gmail.com disse...

Tolstoi viveu num contexto social em que a cultura russa versava nos conceitos do fanatismo Ortodoxo Os provérbios da época "Só Deus e o Czar sabem", " O sol brilha no céu e o Czar Russo brilha na terra.Jamais havia questionamentos sobre a doutrina Ortodoxia e muito menos sobre a existência de Deus, nos séculos XVII e XVIII .Somente com a vinda de Pedro, o Grande, não obstante, forte resistência do clero Ortodoxo,o czar Pedro foi amenizando a interferência da religião no Estado. Tolstoi viveu nesse contexto , e se abrir para o mundo , através de sua extraordinária literatura , seus pensamentos libertários, seus questionamentos espirituais, concluindo pela inexistência de Deus,revelou sua altivez,sua honestidade consigo mesmo. Autor do genial livro "Guerra e Paz" merece toda nossa admiração.

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