quarta-feira, 31 de março de 2010

TOLSTOI SEMPRE ATUAL: DA GUERRA DO CÁUCASO DE KHADJI MURAT AOS EPISÓDIOS BÁRBAROS QUE ASSOLAM A RÚSSIA...

ilustração da edição russa

Os horrores que a gente vem presenciando na Rússia, com seguidos ataques terroristas (tanto no metrô de Moscou, como hoje, no Daguestão) me reportam a uma importante obra da literatura, escrita por Tolstoi. Trata-se da novela, belíssima, Khadji Murat, escrita quando este titã russo estava no auge de seus 75 anos, mas considerada por muitos uma de suas criações mais perfeitas.Trata-se de um verdadeiro grito contra as injustiças sociais e políticas.
A história discorre, justamente, sobre as lutas no Cáucaso, a luta dos tchetchenos contra os russos para manter a sua independência, durante as batalhas pela sua anexação por parte do império russo.
capa de uma das edições russas
capa edição brasileira

Esta obra só foi publicada após a morte de Liev Nikolaevitch e se tornou uma das principais entre o povo russo. Toda ela é verídica. Khadji Murat, o guerreiro tchetcheno, existiu e Tolstoi, ainda jovem, esteve no centro dos combates do Cáucaso em 1851, lá permanecendo por dois anos e sete meses em incursões a povoados tchetchenos. Ele não chegou a ver Khadji Murad, apesar de ter estado ali no tempo em que os russos lutaram contra Chamil(*), quando Khadji Murat se passou para o lado dos russos. Somente 43 anos depois, em 1894, foi que o autor iniciou sua novela sobre este tema. E haja trabalho: passou os anos de 1894 a 1905 (e ainda o considerava inconcluso) elaborando este livro, que para alguns é uma novela, mas para O professor Boris Shnaiderman é um romance curto e, para mim, simplesmente uma obra prima. Ainda segundo este grande professor, são conhecidas 1266 páginas de diferentes versões desta obra e, segundo especialistas, muitas outras se perderam.
O que estimulou Tolstoi a realizar este trabalho consta de seus diários, de julho de 1896:
" Eu voltava para casa, através dos campos. Estávamos precisamente no meado do verão"...."Colhi um grande ramalhete de flores diversas e ia para casa, quando notei, numa ravina, magnífica bardana carmesim em flor, daquela variedade que recebeu em nossa região o nome de 'tártaro"..."Eu caminhava ao léu, pela estrada empoeirada. O campo lavrado, parte de terras senhoriais, era muito vasto; de ambos os lados e na frente, morro acima, via-se apenas o alqueire de terra negra, ainda não gradeada. A lavra estava bem feita, de modo que em todo o campo não se via uma planta, uma ervinha sequer, tudo era negro",,,"Na minha frente, à direita, via-se um pequeno tufo de vegetação. Chegando mais perto, reconheci outro 'tártaro', da mesma variedade daquele cuja flor eu colhera e jogara fora em vão. O pequeno tufo consistia em três plantas. Um delas fora cortada, e o resto de um ramo aparecia como um braço decepado. Em cada uma das outras duas havia uma flor. Essas flores tinham sido vermelhas, mas agora estavam negras. Uma haste fora quebrada e a sua metade, com uma flor suja na ponta, pendia para baixo: a outra, apesar de coberta de lama negra, ainda se mantinha erguida. Via-se que todo o tufo tinha sido pisado por uma roda e que se erguera mais tarde, ficando inclinado para um lado, mas sempre se mantendo de pé - como se lhe tivessem arrancado um pedaço do corpo, revolvendo-lhe as entranhas, e lhe decepassem um braço e furassem os olhos, mas ele sempre se mantivesse firme, sem se entregar ao homem, que destruíra todos os seus irmão ao redor.
'Que energia'! - pensei. - 'O homem venceu tudo, destruiu milhões de ervas, mas esta não se rende.Lembrei-me, então, de uma velha história caucasiana, que presenciara e que eu completei com o depoimento de testemunhas oculares. Ei-la, como se formou em minha lembrança e imaginação."

Foi justamente com este trecho de seus diários que Tolstoi dá início a Khadji Murat. A seguir, a história se desenrola mesclando fatos reais aos enxertados pela abençoada imaginação criativa deste conde maravilhoso, que passa a contar pedaços da vida do personagem título, que - inicialmente, lutou ao lado de Chamil(*) e por fim se passa para o lado dos russos, fugindo deles posteriormente, para -finalmente, morrer. E foi esta morte que a bardana citada em parágrafos anteriores o fez lembrar. Citando ainda uma vez mais o prof. Shnaiderman, este livro é a "expressão de sua continuada reflexão sobre a história e o problema do poder e da violência, ele nos dá a visão que Tolstoi tinha pouco antes de morrer, mas nos dá isto em forma condensada, sem aquele espraiar-se por múltiplas histórias e numerosas personagens como em Guerra e Paz".Acho que não cabe, aqui, mais nenhuma consideração, deixando o resto que não foi dito para que o leitor interessado procure o livro e tire suas próprias conclusões. Esta é uma leitura pertinente e, porque não, até obrigatória, tanto para os amantes da literatura russa (e de literatura geral), quanto pelo momento que a Rússia (e o mundo) atravessa.

Mas quem foi Khadji Murat?
Seu verdadadeiro nome era Khadji-Murat Khunzakhski, cuja data de nascimento desconheço. Morreu em 1852. É nativo de Khunzakha, no Daguestão, irmão mais novo de governantes locais, um dos mais enérgicos e capazes líderes montanhezes. Sua popularidade começa a partir de 1834, quando ele participou de um plano de seu irmão Osman, contra o Íman do Daguestão Gamzat-beka (segundo Iman do Daguestão e da Tchetchenia) e exerceu o importante papel de intermediário entre as tropas russas e seu povo. Em 1836, Khadji -Murat foi acusado de ter relações secretas com Chamil(*) e por ordens superiores foi detido e enviado para Temir-Khan-Churu (no Daguestão) e, no caminho correu, realizando corajoso salto de um penhasco, a beira do qual passava a estrada.Em novembro de 1851, o renomado ajudante do Iman Chamil, entra no revoltoso aul (povoado) tchetcheno Mahket. O tchetcheno Sado recebe o visitante em sua cabana (sáklia), muito embora o recente mandato de Chamil no sentido de prender ou matar seu rebelde ajudante.Não me estendo mais a respeito de Murat, a fim de não atrapalhar a leitura dos que ainda desconhecem o livro.
Restam, agora, algumas poucas palavras a respeito de Chamil.

Ele foi o líder caucasiano, que unificou o Daguestão ocidental e a Tchetchenia, iniciando o 'teocratismo' estatal tchetcheno. Nasceu em 1797 e morreu em 1871. Seu nome real era Ali, que ele mesmo ainda criança mudou para Chamil. Dono de inteligência brilhante, talentoso, teve os melhores professores do Daguestão, dominando a gramática, lógica e retórica na língua árabe.Após a anexação da Tchetchenia pelo Império Russo, Chamil ainda se aguentou por mais cinco anos, até que em agosto de 1859 foi sitiado e preso.Em 1866, em grande solendade oficial, jurou fidelidade à Rússia. Viveu "numa boa" com o regime czarista, até que, já com idade avançada, o czar lhe deu autorização para ir a Medina e Meca (em 1870), lá morrendo em março de 1871.
















aul de Chamil

Na minha modestíssima opinião, ele foi um pioneiro dos métodos brutais utilizados pelos tchetchenos até hoje e isto o romance de Tolstoi mostra bem.

Cabe lembrar, mesmo com o risco de me estender demais neste post, que a questão caucasiana é, de longa data, muito complicada. O Cáucaso, durante muitos séculos, serviu de arena para vários conflitos entre grandes impérios, que tentaram instalar ali seu controle, por ser esta região estratégica logística e economicamente . Ela divide dois mundos: de um lado a Europa e de outro a Ásia.
Explorada pelos navegadores gregos no século VIII a.c, depois pelos persas, partas e romanos. Ponto de contato entre as civilizações bizantina e árabe na Idade Média, caiu nas mãos dos turcos e seljúcidas, sofrendo, posteriormente, invasões de mongóis. No sec.XVI vê-se ali a ocupação otomana.
A Rússia chega ao Cáucaso em 1453, após a tomada de Constantinopla.

O sul e sudoeste da fronteira do Estado Russo constituíam a vasta pradaria povoada por numerosos povos nômades, que representavam uma ameaça constante a cidades e aldeias da Rússia. Deste aquela remota época, buscar saídas para o sul da fronteira natural - as montanhas do Cáucaso , os mares Negro e Cáspio - a fim de garantir a estabilidade nas áreas fronteiriças, foram consideradas medidas para garantir a segurança e defesa da Rússia.Apesar de a Rússia já estar presente no Cáucaso deste o sec. XV, a russificação da região só se tornou efetiva no final do sec.XVIII, após a anexação da Georgia em 1801. A guerra contra a Pérsia e o Império Otomano (1805-1829) permitiu aos russos a conquista de Erevan, capital da Armênia e toda a sua região. A dura resistência das tribos montanhesas subalternas a Chamil só teve fim com a rendição em 1859.

Hoje se vê na região o alastramento do radicalismo islâmico, com as ações vistas nos últimos dias no metrô moscovita e no Daguestão se assemelhando em muito aos atos de grupos radicais fundamentalistas, no estilo do Taliban e Al-Qaeda.
Esperar que agora se dê o fim deste convívio tão turbulento desde priscas eras, a fim de que o povo russo possa viver em paz é algo meio que utópico. Não sou, de maneira nenhuma, contra o Islã: sou apenas a favor da paz. Me condói ver vítimas inocentes, quer seja de um lado, quer seja do outro.Crianças, jovens, velhos, população civil, gente que não tem nada a ver com política, morrendo de forma brutal.
Só resta esperar o bom senso por parte dos dois comandos: o terrorista e o governo russo.

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