segunda-feira, 26 de setembro de 2011

SVETLANA ALLILYEVA - 20CARTAS A UM AMIGO: CARTA NÚMERO 1- OS ÚLTIMOS DIAS DE STALIN

 Me desculpem os leitores deste blog pequeno e desordenado, mas vou postar hoje a carta número 1 da filha de Stalin. Ela deveria ter sido a primeira desta série de posts, o que não aconteceu, já que vou escolhendo as cartas do dia de forma bastante aleatória.  A princípio, a coisa foi sendo orientada pelo meu interesse: postava a que, a meu ver, era a mais interessante. Depois de já ter postado 5 cartas, passo a me guiar pela minha disposição e tempo: as cartas são longas, daí estar escolhendo as menos longas entre elas. Isto, é claro, sem prejuízo do interesse, já que todas oferecem ao leitor uma visão única do ditador soviético e momentos históricos vividos na antiga URSS por alguém que circulava nos bastidores do poder. Além do que, como a própria Svetlana deixa bem claro, já no primeiro parágrafo da primeira carta, a ordem das mesmas não é seqüencial, logo, pouca diferença faz a ordem em que eu as edito.Sendo assim, vamos direto ao que importa: à carta número 1 que começa justamente pelo final de Stalin, em 1953.Uma carta em que ela expressa todo o angustiante conflito de sentimentos em relação ao poderoso pai,potencializado em seus últimos momentos. Interessante, também, saber da reação das pessoas, dos mais graduados membros da URSS, aos mais simples empregados de Stalin. Saber do relacionamento dele com estes empregados. Esta carta me encantou, tanto pelo seu tom humano, quanto histórico. Espero que te encante também.
Boa leitura!
A história será longa. As cartas são extensas. e me anteciparei em certos casos, voltando depois ao começo. Deus me livre, isto não é romance, nem biografia, nem memórias. Minha narrativa não terá seqüência.

Hoje a manhã está maravilhosa. Manhã no bosque: os pássaros cantam, o sol filtra a sua luz através da penumbra verde. Hoje quero falar a você sobre o final, sobre aqueles dias de março de 1953, que passei na casa de meu pai, vendo-o morrer. Significaria aquilo, na realidade, o fim de um era e início de uma nova, como se afirma hoje? Não cabe a mim julgar. Veremos. Meu assunto não é a época, mas o homem.

Aqueles dias foram terríveis. Uma sensação de algo habitual, sólido e seguro se movia, sofria um abalo, começou para mim nesse momento, quando, a 2 de março, vieram procurar-me na Academia, durante minha aula de francês, avisando-me que "Malenkov(6) pede para ir à Blíjnaiaia (assim chamada a casa de campo de papai em Kúntsovo, para distinguir de outras mais distantes). (1) Já era estranho o fato de ter sido outra pessoa, e não meu pai, que me tivesse convidado a ir a casa de campo...
Dirigi-me para lá, com esquisita sensação de ansiedade.
Quando chegamos à cancela e N.S.Khruschev e N.A.Bulgânin(4) fizeram o carro parar na vereda perto da casa, achei que tudo estivesse terminado...Ao saltar do carro, eles me tomaram pelos braços. Os rostos de ambos estavam banhados de lágrimas. "Vamos entrar" - disseram eles. -"Béria(7) e Malenkov contarão tudo a você".
Dentro de casa, já no vestíbulo, senti a atmosfera diferente. Em lugar do silêncio costumeiro, do profundo silêncio, alguém correndo e agitando-se. Quando me disseram, afinal, que a noite meu pai tivera um colapso e que se achava inconsciente, senti-me até aliviada, pois parecia-me que ele não existisse.
Lá pelas três da manhã encontraram-no neste mesmo quarto, deitado exatamente aqui no tapete, junto do sofá, e decidiram transporta-lo para um outro aposento, no sofá onde ele habitualmente dormia.
"Agora está ele lá, com os médicos. Você pode entrar".
Ouvi tudo aquilo, aturdida, petrificada. Os detalhes já não tinham significação. Sentia apenas ma coisa _ que ele ia morrer. Disto não duvidei um só minuto, embora não tivesse falado ainda com os médicos. Simplesmente eu via que tudo ao meu redor, toda aquela casa, tudo estava morrendo diante dos meus olhos. Em todos os três dias que passei ali, só via isto e para mim estava claro que não podia haver outro resultado.
O grande salão onde meu pai estava deitado achava-se repleto de pessoas. Médicos desconhecidos, que viam o doente pela primeira vez (o acadêmico V.N.Vinogradov, que foi médico de papai durante anos, estava preso), agitavam-se terrivelmente em volta dele. Colocavam-lhe sanguessugas na nuca e no pescoço, tiravam cardiogramas, radiografia dos pulmões, a enfermeira não cessava de aplicar-lhe injeções, um dos médicos anotava continuamente no caderno a evolução da doença. Faziam tudo o que era necessário. Todos se movimentavam para salvar uma vida que já não podia ser salva. 

Em algum ponto da cidade a Academia de Ciências Médicas se reuniu em sessão especial, para decidir medidas ainda a serem adotadas. No pequeno salão contíguo, uma junta médica conferenciava ininterruptamente, também decidindo o que fazer. Trouxeram um aparelho de respiração artificial de um certo N.I.I. e com ele, uma equipe jovem de especialistas, os únicos, talvez, capacitados a por o aparelho a funcionar. O volumoso equipamento acabou não sendo utilizado e os jovens médicos olhavam, com espanto, para todos os lados, profundamente deprimidos com o que se passava. De repente, lembrei-me de que conhecia aquela jovem médica. Mas, onde a tinha visto?...Nós nos cumprimentamos, com gestos, mas não conversamos. Todos tentavam permanecer calados, como se estivéssemos no templo e ninguém falava sobre outros assuntos. Ali, no salão, todos tinham consciência de que algo importante, quase grandioso, estava acontecendo e que todos queriam agir de conformidade com isso.
Apenas um homem se conduzia de modo quase inconveniente. Era Béria. 
 
Estava extremamente excitado, e seu rosto já de si tão repulsivo, com aquilo desfigurava-se, refletindo suas obsessões. Essas obsessões eram a ambição de poder, poder, poder, a crueldade, a astúcia. Ele esforçava-se, naquele momento decisivo, para não exagerar a sua astúcia e ao mesmo tempo não deixar de ser astucioso! Isto estava escrito em sua testa! Ele acercava-se da cama e examinava longamente o rosto do doente (papai, às vezes, abria os olhos, mas, aparentemente, sem ter noção de coisa alguma ou numa semi-inconsciência). Béria perscrutava insistentemente aqueles olhos nublados. Ele queria ser sempre ali "o mais fiel, o mais dedicado". Fazia tudo para demonstra-lo a papai, e, infelizmente, durante demasiado tempo, foi bem sucedido...

Nos momentos derradeiros, quando tudo já estava terminando, Béria, de repente, notou-me ali e ordenou: "Levem Svetlana daqui"! Todos os que se achavam em redor olharam para ele, mas ninguém pensou em mover-se. Quando estava tudo acabado, ele foi o primeiro a ganhar o corredor e, no silêncio da sala, onde todos estavam mudos, em torno do caixão, ouviu-se a sua voz alta que não escondia o entusiasmo: "Khustalov! O carro!".

Béria era uma réplica soberba e contemporânea do tipo de palaciano insidioso e a encarnação da perfídia, da adulação e da hipocrisia orientais, que envolveu até meu pai - um homem a quem, em geral, era difícil enganar. Muito do que foi feito por essa hidra mancha hoje o nome de meu pai. Em muitos casos, todos são culpados. Quanto ao fato de que Lavrênti (2) pôde, muitas vezes, enganar meu pai, com sua astúcia, rindo-se disso à socapa, não tenho a menor dúvida. E todos os "de cima" compreendiam isso.

Agora toda a sua sordidez interna vinha à tona. Era-lhe difícil controlar-se. Não era eu só, porém, muitos os que compreendiam isso. Mas temiam-no terrivelmente e sabiam que, a partir do momento em que papai morresse, ninguém na Rússia tinha nas mãos mais poder e força do que aquele homem medonho.
Papai estava inconsciente, segundo constataram os médicos. O ataque foi muito violento; perdera o domínio da voz, a metade direita do seu corpo estava paralisada. Ele abriu os olhos algumas  vezes. O olhar era nevoento e não se sabia se estava reconhecendo alguém. Nesses momentos todos corriam para ele, tentando captar uma palavra, ou ao menos ler um desejo nos seus olhos. Eu estava sentada a seu lado e segurava sua mão. Para mim, nada mais restava. É estranho, mas nos dias de sua doença, naquelas horas em que tinha diante de mim apenas o seu corpo, do qual a alma já se havia desprendido, nos últimos dias de despedida, na Sala das Colunas(3), eu o amava com maior intensidade e ternura do que durante toda a minha vida.  Ele guardava sempre muita distância de mim, de nós crianças, de todos os seus. Nos últimos anos de sua vida, nas paredes dos aposentos da casa de campo havia imensas fotos ampliadas de crianças: menino esquiando, menino ao lado de uma cerejeira em flor. Entretanto, nunca achou tempo para ver cinco de seus oito netos, em uma só vez. Contudo, esses netos que nunca o viram amavam-no e amam-no ainda. Mas naqueles dias, quando ele descansou, afinal, em seu caixão e seu rosto se tornou belo e tranqüilo, senti meu coração dilacerar-se de tristeza e amor.
Uma onda de emoções tão contraditórias e tão intensas, eu nunca senti, nem antes, nem depois disso. Quando, na Sala das Colunas, permaneci em pé durante todos os dias (de fato fiquei em pé, pois por mais que insistissem comigo para sentar e me oferecessem cadeira, eu não podia sentar-me, só podia ficar de pé diante do que acontecia), petrificada e muda, eu compreendia que havia chegado a hora de uma certa libertação. Ainda não sabia e não tinha consciência que espécie de libertação seria, como se expressaria. Mas eu entendia que se tratava  de uma libertação, para todos e para mim também, de um jugo que esmagava todas as almas, corações e pensamentos, com um só bloco.
 Svetlana na Sala das Colunas, 
durante o velório do pai
 Contudo, ao olhar para o seu belo rosto, tranqüilo e até mesmo tristonho, tendo nos ouvidos a música fúnebre (uma antiga berceuse georgiana, canção folclórica com uma melodia triste e expressiva), sentia-me arrebentar de tristeza. Sentia que eu era uma filha imprestável, que nunca fora uma boa filha, que eu vivia em casa como uma estranha,  que eu nunca ajudei em nada aquela alma solitária.Aquele velho homem, doente e por todos abandonado, solitário no seu Olimpo. Aquele que, apesar de tudo,era meu pai e que me amava - como sabia e podia - e a quem eu devia  não só o mal como o bem. Não consegui comer nada durante todos aqueles dias. Não conseguia chorar. Estava esmagada por uma tranqüilidade e uma tristeza de pedra.
A morte de papai foi terrível e penosa. E era a primeira e única morte, até então, por mim presenciada. Deus concede uma morte fácil aos justos...

O derrame cerebral é um processo que vai, aos poucos, atingindo todos os centros e, caso seja sadio e  forte o coração, vai lentamente invadindo os centros respiratórios, causando a morte por asfixia. A respiração da pessoa torna-se cada vez mais difícil e rarefeita. Nas últimas 12 horas , tornava-se claro que a falta de ar era cada vez maior. O seu rosto escureceu e transfigurou-se. Gradativamente suas feições iam-se tornando irreconhecíveis. Seus lábios ficaram enegrecidos. Nas últimas duas horas a pessoa simples e lentamente se asfixia. A agonia foi terrível. Ela o estrangulava à vista de todos. Em dado momento - não sei se isto realmente aconteceu ou se foi apenas uma impressão - provavelmente já no último minuto, ele abriu os olhos, de repente, abrangendo com a vista todos os que estavam ao seu redor. Que olhar terrível aquele: talvez inconsciente, talvez encolerizado e cheio de terror diante da morte e dos rostos desconhecidos dos médicos, debruçados  sobre ele - olhar esse que abrangeu a nós todos, numa fração de segundo, e então, o que era incompreensível e aterrador (até hoje não compreendo e nem posso esquecer), ele suspendeu de repente o braço esquerdo (o único que se movia) e não se sabe se indicava alguma coisa no alto ou se ameaçava a todos nós. O gesto era incompreensível, porém ameaçador, não se sabendo a quem e a que se destinava. No instante seguinte sua alma, num derradeiro esfôrço, libertou-se do corpo.

Pensei que fosse eu mesma morrer sufocada. Agarrei com força o braço da jovem médica, minha conhecida. Ela tremeu de dor, mas continuamos a segurar-nos uma na outra. 
A alma se desprendeu, o corpo se acalmou, o rosto empalideceu e voltou ao seu aspecto normal; dentro de instantes ele tornou-se imperturbável, tranqüilo e belo. Durante alguns minutos - não sei quantos, mas pareceram-me muitos -todos permaneceram petrificados e em silêncio.
Em seguida, os membros do governo precipitaram-se para a saída. Era preciso viajar para Moscou, para o Comitê Central onde todos aguardavam notícias. Eles foram transmitir a notícia que, no fundo, todos desejavam receber. Não cometamos pecados, uns contra os outros: eles foram dilacerados trmbém por sentimentos contraditórios iguais aos meus: tristeza e alívio.

Todos eles (não me refiro a Béria, que era o único espécimen do gênero) se agitavam ali todos esses dias, esforçando-se para ajudar e, ao mesmo tempo, sentindo medo: como iria terminar tudo aquilo? Mas vi também naqueles dias lágrimas sinceras nos olhos de muitos deles. Vi em prantos K.E.Vorochílov, L.M.Kagânovitch, G.M.Malenkov, N.A.Bulgánin e N.S.Kruschev. Além do interesse comum que os unia a papai, era grande o fascínio exercido por sua personalidade privilegiada sobre as pessoas. Ele as atraía e era impossível resistir-lhe. Muitos sabiam e sentiam isto, mesmo os que hoje dizem que nunca o experimentaram, e os que fingem não ter experimentado.

Todos se dispersaram. Restou apenas o corpo que aqui deveria permanecer por mais algumas horas. Era praxe.
Só se achavam na sala N.A.Bulgânin, A.I.Mikoian e eu, que permaneci sentada num sofá, junto à parede em frente. Apagaram a metade das luzes; os médicos retiraram-se. Só a enfermeira chefe e a enfermeira de plantão continuavam ali. Esta última era minha conhecida de longa data, do hospital do Kremlin. Silenciosamente, ela arrumava algo sobre a imensa mesa de jantar, situada no meio da sala.

Aquele era o recinto em que se serviam banquetes e onde se reunia sempre o restrito grupo do Bureau Político. Em torno daquela mesa - durante um almoço ou jantar - decidiam-se ou levantavam-se as questões. "Chegar para almoçar" com papai significava ir para resolver algum problema. Um enorme tapete cobria o chão; poltronas e sofás alinhavam-se ao longo das paredes; a um canto da sala, uma lareira. Papai sempre gostou de ter fogo aceso, no inverno. Em outro canto, havia uma vitrola com discos. Papai possuía uma boa coleção de canções populares - georgianas e ucranianas. Não admitia nenhuma outra espécie de música. Neste quarto se passaram os últimos anos de sua vida - quase vinte anos. Ele agora se despedia de seu dono.

Vieram despedir-se os empregados, sua guarda pessoal. Estes, sim, demonstraram verdadeiro sentimento e dor sincera. Cozinheiros, motoristas, guardas de serviço, copeiras, jardineiros - todos entravam em silêncio, aproximavam-se da cama e choravam todos. Enxugavam as lágrimas como crianças, com as mãos, as mangas, os lenços. Muitos soluçavam, enquanto a enfermeira oferecia-lhes gotas de valeriana, também chorando. E eu, como que petrificada, sentava-me, levantava-me, olhava e nem uma lágrima. Sentia-me incapaz de sair sair dali. Não desprendi os olhos daquilo que via.

Veio despedir-se também a caseira Valentina Vassílevna Stômina - Valétchka, como a chamávamos - que trabalhou nesta casa de campo cerca de 18 anos. Jogou-se de joelhos ao pé do sofá, encostou a cabeça sobre o peito do morto e começou a corar aos gritos como é de uso no campo. Custou a conter-se e ninguém a incomodou.

Todas estas pessoas que serviam a meu pai gostavam dele. Na intimidade ele não era exigente. Ao contrário, era cordato, simples e amável para com os domésticos. E se perdia a paciência era somente com os "chefes" - generais da guarda e generais comandantes. Os serviçais não podiam queixar-se nem do despotismo, nem da crueldade. Pelo contrário, freqüentemente recorriam a ele, pedindo ajuda, sem nunca terem obtido jamais uma recusa. Váletchka - bem como os demais, nestes últimos anos - sabia a respeito dele e o vira muito mais do que eu, que morava longe e distanciada dele. Em torno daquela mesa grande que ela servia, nos grandes banquetes, chegou a ver pessoas de todo o mundo. Presenciou muitas coisas interessantes - dentro dos limites de seu horizonte, é lógico, e agora que nos encontramos, ela refere essas coisas com vivacidade e humor. E, como todos os demais serviçais, ela vai morrer certa de que não houve no mundo pessoa melhor do que papai. E ninguém jamais a fará mudar de idéia.

Tarde da noite - ou melhor, de manhãzinha já -vieram buscar o corpo para a autópsia. Aí, comecei a sentir um tremor nervoso - queria chorar, queria banhar-me em lágrimas. Mas, nada: sentia apenas o tremor. Trouxeram a maca e nela colocaram o corpo de meu pai desnudo - um belo corpo, que absolutamente não era o de um decrépito, de um velho. E apoderou-se de mim uma estranha dor que me golpeava o coração como um punhal, e eu senti e compreendi o que significava ser "carne da carne". Compreendi que cessou de respirar e viver aquele corpo que me deu a vida, e eis que eu ia continuar a viver e viver nesta terra.

Tudo isso é impossível de se compreender enquanto não se vê com os próprios olhos a morte dos pais da gente. E para compreender, em geral, o que é a morte é preciso vê-la, nem que seja uma só vez. Ver como "a alma se desprende" e só ficam os restos mortais. Tudo isso eu não compreendia até então, mas sentia que tudo isso passava através de meu coração, deixando marcas.

E levaram o corpo. A ambulância chegou até a porta da casa de campo. Todos desceram. E todos tiraram os gorros, inclusive os que estavam do lado de fora, perto do alpendre. Eu permaneci à porta, alguém me deu um casaco, tudo tremia em mim. Alguém me abraçou pelos ombros - Era N. A. Bulgânin. O carro fechou bruscamente as portas e partiu. Mergulhei o rosto no peito de Nikolai Aleksandrovitch(4) e afinal rompi em soluços. Ele também chorava e me acariciava a cabeça. Todos estavam ainda à porta; depois começaram a dispersar-se.

Encaminhei-me para a ala de serviço, unida à casa por um longo corredor, através do qual traziam a comida da cozinha. Todos os que ficaram se reuniram aqui - as enfermeiras, os serviçais e os guardas. Sentaram-se à sala de jantar - uma vasta sala com bufê e radiorreceptor. Repetidamente  discutiam sobre o acontecido, como se tinha passado. Obrigaram-me a comer alguma coisa. "Hoje vai ser um dia difícil e você nem dormiu e daqui a pouco terá que sair de novo para a Sala das Colunas; precisa recuperar as forças!" Comi algo e sentei-me na poltrona. Eram cinco horas da manhã. Depois fui para a cozinha. No corredor ouviam-se ruidosos soluços - era a enfermeira, que revelava aqui mesmo, no quarto de banho, um cardiograma, e chorava alto. Chorava tanto como se tivesse perdido de vez toda a sua família..."Aí está, trancou-se e está chorando já há muito tempo", disseram-me.

Como que inconscientemente, todos esperavam, sentados na sala de jantar, uma só coisa. Daí a pouco, às seis horas da manhã, anunciaram pelo rádio aquilo que nós já sabíamos. Mas todos precisavam ouvir aquilo, como se sem isso não pudéssemos acreditar. E eis que, afinal, bateu seis horas. Então, ouviu-se a voz pausada, muito pausada, de Levitan - ou a de um outro, parecida com a de Levitan(5) -voz que sempre comunicava algo importante. E aí todos compreenderam que era verdade, sim, que aquilo tinha acontecido. E todos se puseram de novo a chorar - homens, mulheres, todos. Eu chorava alto e me fazia bem não estar sozinha, sentindo que todas aquelas pessoas compreendiam o que tinha acontecido e choravam junto comigo.

Aqui tudo era verdadeiro e sincero e ninguém deixava de demonstrar sua aflição e sua lealdade. Todos se conheciam uns aos outros, havia já muitos  anos. Todos se conheciam e sabiam também que eu tinha sido uma filha má e que meu pai tinha sido um mau pai, mas  também que meu pai, apesar disso, me amava e que eu o amava. Ninguém aqui o considerava um deus, nem um super-homem, nem um gênio, nem um desalmado -amavam-no e o respeitavam pelas mesmas qualidades humanas comuns, sobre as quais os criados fazem sempre com justeza o seu julgamento.

A seguir, algumas fotos históricas daquele dia:
 No caminho para a sede dos sindicatos, onde estava o corpo de Stalin, houve uma comoção e muitos
foram pisoteados, na tentativa de alcançar a fila.
Alto escalão do governo soviético



___________________________________________________
Notas: 
(1)blijnaia significa 'mais próxima'
(2) Kavênti Béria
(3Sede Central dos Sindicatos Soviéticos:
(4)Bulgânin, general da extina União, no período de Stalin.


(5)Yuri Levitan, locutor da rádio da União Soviética;  locutor oficial do cerimonial do governo. Sua voz se tornou um símbolo daquela época para todo o povo soviético.

A seguir, um vídeo com a voz de Levitan anunciando a capitulação alemã na segunda guerra para os que estudam a língua russa praticarem um pouco e para os curiosos conhecerem a voz que marcou uma época.

(6)Georgui Malenkov, político soviético, líder do Partido Comunista e um dos mais próximos colaboradores de Stalin. Conduziu o país de março de 53 - morte de Stalin, até setembro do mesmo ano, chegando a ser Premie da URSS.
 (7) Chefe da NKVD na Geórgia e um dos principais executores do Grande Expurgo. Acusado de crimes de guerra e do Massacre de Katyn. Foi condenado à morte por fuzilamento, acusado de vários delitos, em junho de 1953.

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