Tatyana e o pai
A meu ver, Guerra e Paz foi o melhor livro do conde Lev Tolstoi. e umd os melhores que já li .Malgrado seu volume, o li de um sopro, tão grande o interesse que me despertou, isto há anos atrás. E, pelas memórias da filha do escritor, foi o lvro que mais lhe consumiu as forças, o que justifica que eu transcreva, neste post, algumas passagens de "Tolstoi, meu pai",de Tatyana Tolstaya, filha mais velha do velho conde, a respeito do período em que ele escreveu Guerra e Paz. Por elas a gente percebe a dimensão que esta obra ocupou na vida do escritor, bem como toma conhecimento de alguns outros fatos ligados ao livro: seu primeiro título, a enormidade do trabalho, sua planificação, a preocupação de Tolstoi em não se perder em minúcias, bem como suas preocupações com a opinião de quem ele gostava e de quem ele "cada vez gostava menos", como no caso- Turguênev...O texto de sua filha demonstra, com clareza, o trabalho titânico de construir uma obra de tal magnitude, que o levou a pesquisas históricas e processos semelhantes ao do historiador, interessado em manter a verdade dos fatos.
"Meu pai dizia que para escrever 'Guerra e Paz' levara cinco anos de labor contínuo e exclusvo. Naquela época tomou poucas notas, reservando toda a sua atenção para esse romance. Assim, há poucos documentos permitindo recontruir a história da criação de Guerra e Paz. Todavia, encontram-se, aqui e ali, em seu diário e em suas cartas, preciiosas indicações sobre a maneira como Tolstoi encarava então os problemas da escritura. Assim:
"É preferível eliminar tudo quanto possa provocar indignação' (Diário, 29 de março de 1869). Ou ainda: "O gênero épico é o único que parece natural" (Diário, 3 de janeiro de 1863.
Declara, numa carta, que "os problemas da literatura são incomensuráveis - como dizem os matemáticos-com os problemas sociais.
O objetivo do escritor não consiste em resolver as questões formuladas, mas em fazer amar a vida em todas as suas inúmeras e inesgotáveis manifestações. Se me dissessem que posso escrever um romance em que exporei sobre todas as questões sociais um ponto de vista que julgo certo, eu não lhe dedicaria nem duas horas de trabalho. Mas se me dissessem que o que estou escrevendo será lido dentro de vinte anos pelas crianças de hoje e que, lendo-o, essas crianças vão rir, chorar e aprender a amar a vida, eu lhe consagraria toda a minha existência e toda a minha força'.
Eis o que, em 1863, escrevia à prima Alexandra:
"Nunca senti minhas forças espirituais e mesmo morais tão livres e disponíveis para o trabalho. É um romance sobre os anos 1810-1820 que, desde o outono, me ocupa inteiramente. Sou agora um escritor com todas as forças de minha alma. Escrevo, reflito, como antes nunca escrevi nem refleti em minha vida".
Em 1864, durante uma caçada, sofreu uma queda de cavalo e quebrou o braço. Houve complicações e a cura se fez esperar por longos meses. Foi durante a ociosidade forçada de sua convalescença que concebeu a maior parte da obra.
Em 23 de janeiro de 1865, escreveu ao poeta Fet, seu amigo e fiel correspondente:"
"Fiquei sabendo de uma coisa surpreendente a meu respeito. Depois que meu cavalo me atirou ao chão, quebrando-me o braço, meu primeiro pensamento ao recobrar os sentidos, foi de que era um escritor. Sim, eu sou um escritor, mas um escritor solitário, um escritor que se cala. Em breve aparecerá a metade da primeira parte de O ano de 1805(primeiro título que deu à Guerra e Paz). Peço-lhe que me escreva sua impressão, mesmo quanto aos pormenores. Sua opinião, como também a de um homem de quem, à medida que envelhece, cada vez gosto menos - Turguêniev- me são preciosas. Considero tudo quanto publiquei até agora como simples exercícios de redação, como rascunhos. O que vou agora publicar me parece fraco - o que é inevitável no caso de uma introdução - mas, apesar disso, é impressionante! Escreva-me tudo quanto se diz nos meios que freqüenta."
A 7 de março do mesmo ano anotava no diário: "Escrevo, rasuro. Tudo está claro, mas apavora-me a enormidade do trabalho a realizar. É preciso traçar um plano de modo a não me deter em minúcias modificando-as constantemente, e a pensar nos trechos importantes que virão a seguir. E a 19 de março: "Li com interesse crescente a história de Napoleão e de Alexandre.Transbordo de alegria com a idéia de poder fazer uma grande obra, uma história psicológica: o romance de Alexandre e de Napoleão . Nele porei toda a covardia, toda a loucura, todas as contradições dos homens, do meio em que vivem e também deles próprios..."
No dia seguinte anotava, ainda: "Tempo admirável. Estou bem de saúde. Fui à Tula a cavalo. Idéias grandiosas. Meu plano da história de Alexandre e de Napoleão define-se." Finalmente, a 23 de março:
"Durante a tarde escrevi pouco, mas bem. Vou conseguir." Pelo fim do ano, escreveu a Fet: ars longa, vita brevis.Se eu pudesse, ao menos, realizar a centésima parte daquilo que se concebeu! Mas não se consegue nem a milésima! Em todo o caso esse sentimento de poder criar faz a felicidade de todos nós, os escritores. Esse sentimento, você o conhece. Sinto-o este ano com uma força particular."
Trabalhou em Guerra e Paz com um ardor, uma embriaguez e um amor únicos, descurando tudo quanto não fosse sua obra. Ele, que na velhice diria que
"a obra mais importante de um homem é a sua vida",
anota, na data de 27 de novembro de 1866: "
O poeta tira da vida o que ela tem de melhor e coloca-o em sua obra. É por isso que sua obra é bela e sua vida é má..."
E numa carta a Fet, de 28 de março de 1867:
" A força da poesia reside no amor. Sem amor, não há poesia."
Eis, aproximadamente, o que o escritor disse naquela época a respeito de sua obra e de suas idéias sobre a literatura.
É difícil descobrir todos os recursos que Tolstoi usou para esta epopéia. Encontra-se na Biblioteca de Yasnaia Poliana uma série de obras históricas: memórias, descrições, cartas, notas de autores russos e franceses da época. Além desses documentos, meu pai recorreu a todas as fontes possíveis. Assim é que muitas vezes foi a Moscou para consultar os arquivos dos museus nacionais.
Escreveu à sua mulher, após ter estudado manuscritos da maçonaria pertencentes ao acervo do Museu Rumiantsev (atual Biblioteca Lenin):
"Não posso te explicar porque essa leitura me mergulhou em abatimento que durou o dia inteiro.O que é triste é que esses maçons eram uns imbecis."
E no dia seguinte:
"Logo pela manhã fui ao Museu Rumiantsev. O que encontrei lá é de interesse pungente. Há dois dias que passo lá três ou quatro horas, sem sentir o tempo passar."
Visitou o campo de batalha de Borodino (já postado neste blog)em todos os seus recantos. Foi com desgosto que soube que o guarda do monumento, que fora testemunha da batalha, acabara de morrer. Meu pai fez duas vezes a volta aos locais em que se travaram os combates, tomando notas e fazendo croquis dos movimentos das tropas.
"Estou muito contente com minha excursão, escreveu ele. Se Deus me der saúde e o necessário, farei da batalha de Borodino uma descrição como nunca se fez ainda até agora".
Os jornais da época também lhe foram de uma ajuda preciosa. Consultou-os longamente nas bibliotecas.Mas, desejoso de ter uma coleção completa, anunciou no Jornal de Moscou, dando o endereço de um hotel moscovita:
"Deseja-se adquirir, por 2000 rublos de prata, uma coleção completa da Gazeta de Moscou de 1812".
Os arquivos e as tradições orais familiares lhe serviram para descrever as famílias Volkonski e Rostov. Assim é que a carta da princesa Maria à sua amiga Júlia reproduz quase inteiramente uma carta da mãe dele à uma amiga. Quanto aos personagens do livro são todos retratos compósitos de antepassados, de amigos e de pessoas do círculo de relações de seu pai.
"Quem é o príncipe Andrei? -escreveu ele numa carta. -Ninguém, como todo herói de romance, a menos que o romancista não passe de um memorialista ou de um biógrafo.Teria vergonha de ser editado, se meu trabalho consistisse apenas em fazer retratos copiando do original..."
É provável que o único retrato, cópia fiel do original, o que meu pai, aliás, não negava, seja o de Natacha, a irmã caçula de sua mulher, Tatiana Bers Na época em que Guerra e Paz foi escrito, ela não estava ainda casada e meu pai, que lhe servia de confidente, tinha-lhe muita afeição. Ele lhe previra o destino: ela casou-se com Alexandr Kusminski, um homem de bem, muito bom, sem ama-lo apaixonadamente e tornou-se, com o tempo, uma senhora ajuizada, que estava engordando, exatamente como aconteceu com Natacha, depois de casada com Pedro...
Se ele fantasiava com os personagens imaginários, não se permitia fantasiar, nem de leve os personagens históricos..
Finalizo o post passando a palavra ao próprio autor:
"Em todo meu romance, quando personagens históricos agem ou falam, eu nada inventei, mas me servi de documentos aos quais, à medida que meu trabalho progredia, acabaram por formar toda uma biblioteca. Creio ser inútil dar aqui todos os títulos a citar os textos dos quais me vali."
Retrato de Tatiana, pintado por Ilya Repin
fonte: Tolstoi,meu pai - Recordações
Tatiana Tolsaya
Eitora Nova Fronteira
Coleção Vidas Extraordinárias-1975
(livro esgotado)
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